A reportagem é de Naira Hofmeister e publicada por Carta Maior, 26-01-2012.
Um dos temas de maior importância na Rio+20 em junho, no Rio de Janeiro, a sustentabilidade urbana foi amplamente debatida no segundo dia do Fórum Social Temático (FST), que segue até o próximo domingo, 29. Um dos objetivos do evento que ocorre em Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo é justamente debater propostas para serem levadas à conferência da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em Novo Hamburgo um seminário durante a manhã – aprofundado através de oficinas práticas no período da tarde – se debruçou exclusivamente sobre o assunto, detalhando desde opções de materiais para a construção civil que otimizam o aproveitamento de recursos naturais até dicas simples para minimizar a impermeabilização do solo.
Já em Porto Alegre uma reunião com presença de grande público propôs uma reflexão crítica sobre pontos específicos que constam no rascunho do documento que deverá ser assinado pelos chefes de Estado presentes naRio+20, e que vem sendo considerado protocolar e pouco profundo.
Em ambos os casos, a conclusão é que a organização urbana atual não fornece qualidade de vida aos seus habitantes, é excludente, e gasta demasiados recursos naturais para se manter.
“As cidades consomem 60% da energia gerada no planeta e emitem o equivalente a 70% da poluição global. Entre 1993 e 2002 aumentou em 50 milhões o número de pessoas carentes vivendo em zonas urbanas”, observa a arquiteta e urbanista Daniele Tubino Pante de Souza.
Entretanto, diversos conferencistas reiteraram em ambos os eventos que apenas com ampla mobilização popular será possível mudar esse cenário dentro do prazo necessário para reverter o processo de colapso dos recursos naturais.
“A sociedade civil tem um papel fundamental na condução do momento político e econômico atual. O dirigente político tem que estar pressionado para promover mudanças e, mesmo quando os governos são de esquerda, não podemos relaxar”, provoca o ambientalista e líder do Movimento Roessler, Arno Kayser.
Cidades já concentram 85% da população brasileira
O território de zonas urbanas corresponde a 2% das áreas ocupadas pela humanidade no planeta Terra e entretanto, já concentram 50% da população mundial – a previsão é que em 2050 esse percentual se eleve para 70%. “No Brasil, esse número já é de 85% vivendo nas cidades”, lembra um dos idealizadores do Fórum Social Mundial Oded Grajew.
Esse mínimo território, é portanto, o grande responsável pelo consumo dos recursos naturais. A construção civil é a grande vilã neste caso, sendo responsável pela utilização de 12% da água limpa da Terra e por 1/3 de tudo o que se extrai do planeta. Mais: é o setor que mais emite resíduos no mundo, 40% do total que se descarta vem das empresas que erguem edifícios e casas.
Há um cálculo, que está sendo chamado de “Pegada Ecológica” que avalia quanto cada cidade consome de recursos naturais por habitante. “Para manter o padrão de vida atual estamos gastando o equivalente a um planeta e meio. Em 2050, se não modificarmos nosso comportamento, serão necessário entre 2,5 e 5 planetas”, alerta o engenheiro civil colombiano Santiago Muñoz Navarrete.
Um dos grandes problemas em discussão na atualidade, o aquecimento global, só pode ser controlado se as cidades reduzirem seu nível de consumo.
Ocorre que 60% das emissões de gás carbônico na atmosfera são provenientes do uso de energia, concentrado nas cidades. A se manter o comportamento atual da população, a expectativa é que até 2025 essa demanda duplique – isso sem contar que há 1 milhão de pessoas em todo o planeta que não possuem luz elétrica em suas casas.
Pois bem, estudos mostram que para controlar a temperatura média da Terra de forma que ela não suba mais de 2°C nos próximos anos, será preciso reduzir pela metade o consumo de energia atual.
O cálculo a ser feito neste caso é pouco alentador. Será preciso incluir esse 1 milhão de pessoas que está desligado da rede elétrica, não multiplicar por dois o consumo nos próximos treze anos e ainda cortar a metade da atual capacidade instalada.
“Ou seja, se algum empreendimento se orgulhar de ter conseguido uma tecnologia que reduz em 30% as emissões, é absolutamente insuficiente, não resolve”, observa o presidente do Instituto Ethos, Jorge Abrahão.
Preocupação com efetividade da Rio+20
Justamente sobre dessa difícil equação que os chefes de Estado deveriam discutir durante a conferência sobre desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas que ocorre em junho no Rio de Janeiro – cujo título Rio+20 faz uma referência ao objetivo de avaliar as ações ambientais promovidas duas décadas depois da Eco-92.
Entretanto, participantes do Fórum Social Temático manifestam temor de que a Rio+20 tenha pouca efetividade. “Nos preocupa muito o rumo que o evento está tomando, que seja esvaziada ou que não sirva para tomar decisões políticas ousadas”, revela o diretor geral da Companhia Municipal de Saneamento de Novo Hamburgo (Comusa),Mozar Artur Dietrich.
O texto de 19 páginas que está sendo apresentado como um rascunho dos compromissos que serão firmados por chefes de Estado presentes no evento foi duramente criticado por ser ambíguo, burocrático e pouco profundo.
“O documento apresentado como rascunho tem sérias assepsias. O problema continua grave, o diagnóstico é gravíssimo, porque baixar as expectativas (sobre os resultados do evento)? Quando o assunto é a crise econômica, as expectativas se mantém”, compara a ex-senadora Marina Silva.
“É um documento certinho, não tem nenhum absurdo, mas existindo ou não, não vai fazer diferença. Ele apenas tangencia temas fundamentais”, concorda o engenheiro florestal e consultor sustentabilidade, Tasso Azevedo.
Para reverter essa situação, as lideranças conclamam que a população se engaje na luta e pressione seus representantes para que adotem medidas que de fato “coloquem o dedo na ferida”, como lembrou Oded Grajew.
“Precisamos transformar a Rio+20 em um grande evento de mobilização social, em uma caixa de ressonância dessa pauta de sustentabilidade”, acredita o escritor Frei Betto.
O desabafo do prefeito
Grajew acusa os governos de “não estarem dando as respostas adequadas aos desafios sociais, ambientais, políticos e éticos” que existem na contemporaneidade.
Entretanto, durante a abertura do Fórum Social Temático Cidades Sustentáveis, em Novo Hamburgo, a confissão feita pelo prefeito do município, Tarcísio Zimmermann (PT), demonstra que quem está nesse papel tem poucas possibilidades de ousar.
Falando logo após a exposição do ambientalista Arno Kayser, que conclamou a plateia a aumentar a pressão sobre os governantes para que mudanças efetivas ocorram, Zimmermann reconheceu a dificuldade que o Executivo tem em propor alternativas às políticas e práticas tradicionais na administração.
“Posso garantir que governos sempre se sentem pressionados. E que não é fácil para um governante buscar alternativas porque temos medo, às vezes a experiência pode dar errado e então é melhor apostar no que já é conhecido”, admitiu.
O chefe do Executivo municipal deu como exemplo a obra de sanamento básico que realiza na cidade e que vai permitir tratar 80% dos esgotos – a taxa atual é de 2% e o resíduo é integralmente despejado no Rio dos Sinos.
Zimmermann contou que a empresa contratada para fazer um estudo sobre o projeto, em 2009, apresentou um orçamento que assustou sua equipe. Além de cobrar pela instalação de todos os equipamentos, o valor mensal de operação do sistema chegaria a R$ 1 milhão. “Teríamos que repassar à população um aumento de 130% na taxa de água”, contou.
“Esse setor é dominado por meia dúzia de empresas que ditam qual a tecnologia será usada e ela é sempre cara”, completou.
Convencido que tinha que haver uma saída para a equação, o prefeito realizou um seminário para debater alternativas ao modelo apresentado. Gostou de uma iniciativa trazida da Espanha que propõe o tratamento em lagoas de junco, uma planta que tem a capacidade de filtrar as impurezas da água contaminada, armazenando os resíduos em suas folhas.
Melhor: o valor mensal de manutenção do sistema é de R$ 50 mil. O projeto, entretanto, nunca tinha sido aplicado em uma grande cidade porque havia enorme dificuldade em convencer os gestores a apostar no projeto. “A lógica econômica se impõe sobre todos nós, é difícil ter opções. Não é muito fácil esse enfrentamento e a construção de alternativas. Foi preciso coragem”, desabafou ao final o chefe do Executivo.
Novo Hamburgo já está implantando o piloto do sistema, de forma localizada para fazer experiências. Segundo o prefeito, o tratamento em lagoas de junco será estendido para todo o município ao longo dos próximos cinco anos.