São, acima de tudo, órfãs de pai e mãe. Órfãs de um ambiente familiar sadio e equipado com as mínimas condições de sobrevivência. Trata-se, portanto, de um punhado de meninas abandonadas, filhas de pais pobres e igualmente abandonados: ao desemprego e subemprego, à pobreza à miséria pura e simples, quando não ao mundo da droga. Seus familiares perderam completamente o controle sobre elas e não mais as conseguem mantê-las em casa. A polícia prende em flagrante, leva-as até algum abrigo, mas o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) impede a detenção de crianças com idade inferior a 12 anos. Raramente alguém da família aparece para reivindicar qualquer parentesco, e menos ainda qualquer tipo de responsabilidade. O resultado é a volta inevitável às ruas e à prática do furto, um novo confronto com a polícia, a impossibilidade legal de prisão, novamente a rua... E assim sucessivamente, sem sinais visíveis de reversão positiva.
São órfãs do Estado e de uma cidadania digna. Sem casa e sem pátria! Se a família se revela incapaz de cuidar e zelar pelo futuro dessas meninas, semelhante tarefa deveria recair sobre as instâncias de defesa das crianças e adolescentes, como reza o ECA ou como garante a própria Constituição brasileira. Ou ainda, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos: "A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social” (Artigo XXV, nº 2). Com o pretenso amparo dessas leis, por um lado, e de fatos tão desoladores e rotineiros, por outro, uma série de perguntas se levanta. Quem está por trás desse grupo de menores, usando-as para os trabalhos sujos do crime? Onde estão as políticas públicas de proteção à infância e adolescência? Como garantir a essas meninas, entre tantas outras, alimento, vestuário, carinho, moradia, escola, lazer e perspectiva de futuro... Entre outros direitos básicos? Por outro lado, como garantir a paz para os pequenos e médios comerciantes que precisam trabalhar para sustentar suas famílias? Enfim, e pior que tudo, como preservá-las de uma dependência tóxica inevitável, bem como de uma delinqüência precoce? Sem família e sem a presença dos órgãos do Estado, até quando elas permanecerão vivas?
Não se trata de transferir o problema para o âmbito da segurança pública. Embora seja a polícia e o poder judiciário que, frequentemente, lida com elas, não se trata de reduzir a questão a "um caso de polícia”. O contexto socioeconômico, que as fez crescer como "erva daninha” em meio à chamada "sociedade de bem”, desde cedo atirou-as à beira da vida e da história. Nasceram e se criaram, em geral, à margem de qualquer oportunidade de estudo e trabalho e, por consequência, sem horizontes mais amplos. Pois não raro as "pessoas do bem” são confundidas com as "pessoas de bens”, não importando a forma como esses foram adquiridos. Tampouco se trata de jogar o fardo inteiro sobre os ombros dos pais (sem desconhecer que em alguns casos, e pelos motivos mais variados, estes contribuem para agravar a situação). No fundo, deparamo-nos com um modelo político e econômico que, impulsionado pelo motor do lucro e da acumulação de capital, abandona ao desdém e à própria sorte boa parcela da população. Como lembram os bispos da América Latina e Caribe no Documento de Aparecida, "já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela, a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia ou sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (DA, nº 65).
Mas, pior que tudo, são órfãs de uma liberdade fácil, traiçoeira e ilusória. De fato, em nossa sociedade do espetáculo e do sensacionalismo, o conceito de liberdade está completamente desvirtuado. Os palcos iluminados das ruas e da mídia em geral difundem a noção de que a liberdade está ligada à capacidade de produzir ou ao poder de ter, consumir, fazer, aparentar... Não necessitamos de muitas pesquisas para constatar que a liberdade sem limites e sem qualquer espécie de regra é terreno ambíguo que pode levar ao abismo. A porta larga de "fazer aquilo que se quer” conduz, não raro, aos becos sem saída da droga e do roubo, da prostituição e da violência, do crime e da morte. Semelhante modo de entender a liberdade torna as crianças vítimas de sua própria vontade, da mesma maneira que torna a sociedade refém de seus filhos menores. Se, por uma parte, a sociedade retirou da família o direito e o dever de impor limites no processo de formação e crescimento de seus descendentes, por outra, nenhuma instituição social, assistencial ou religiosa assume hoje tal encargo. Resulta que, num terreno tão minado por apelos estridentes e permissivos, especialmente no universo urbano, as crianças caminham à deriva. Frágeis e facilmente vulneráveis às gangues de pessoas experimentadas no crime organizado, as quais, explorando sua inocência e imunidade, as condenam ao vício e à morte antes dos 15, 20 ou 30 anos. Muitas vezes adquirem precocemente os vícios dos adultos, sem dar-se conta da responsabilidade que isso comporta. Daí a dificuldade de responder por seus próprios delitos.
A verdadeira liberdade, aquela que cria alicerces sólidos e educa para o futuro, supõe um duplo acompanhamento. Primeiramente, uma atenção paterna, materna e familiar, amorosa sem dúvida, mas responsável por delimitar o contexto básico dos direitos e deveres. Uns e outros se complementam e retroalimentam. Em segundo lugar, a capacitação para uma convivência pacífica e para defender-se em sociedade. O que inclui educação, capacidade de escolha profissional e senso de responsabilidade frente a si mesmo, aos outros e à construção de uma cidadania. Desnecessário lembrar o quanto, no Brasil, estamos longe disso! E quantas crianças, adultas antes da infância, prosseguem por mares bravios, sem qualquer esperança de vislumbrar o farol de um porto seguro!
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais
Fonte: Adital