Brasil de Fato – Como é sua relação com os demais presos?
Cesare Battisti – A ala onde estou é especial para ex-policiais, mas tem também gente com curso superior, que são uns 10%. Tenho relações com todo mundo tranquilamente. A cadeia é um micromundo, se reproduzem as mesmas relações que existem na rua. Tem pessoa de todo tipo, você se relaciona mais com umas, menos com outras. Felizmente não tem problema de violência e não é muito bagunçado como outros pavilhões, que são um inferno, como o local onde me colocaram na cadeia da Polícia Federal, onde fiquei um ano e quatro meses, e também em Cascavel [PR], onde estive alguns dias.
Todo mundo lhe conhece na prisão?
Claro. Todo mundo sabe, quando tem visita, parentes de presos ficam surpreendidos, porque a mídia fala que eu sou terrorista, assassino. O psicólogo de um preso já perguntou: “E esse Cesare Battisti, onde está?”. E o preso disse, “está aí conosco”. E ele respondeu: “Sério? Está aí? E não está acorrentado? Como?”.
Como o senhor tem visto a repercussão do seu caso na Itália e no Brasil?
É difícil falar disso, essa é a razão pela qual fiquei traumatizado e precisei de um psiquiatra. Só de ver alguma coisa que não tem muito diretamente a ver comigo eu já fico... meu coração dispara, já não me controlo, fico em um estado semi-consciente. Ontem, por exemplo, passou no SBT uma informação do Berlusconi com suas prostitutas. Só com o anúncio da notícia “Itália”, eu fiquei assim [trêmulo].
Fabricaram um monstro que não tem nada a ver comigo.
Qual é o interesse nisso?
Me perseguem porque sou escritor, tenho imagem pública. Se eu não fosse isso, seria mais um, como vários italianos que saíram do país pelo mesmo motivo. Sou perseguido pelo Estado italiano e pelo Judiciário brasileiro. Essa perseguição não é grátis. Não se desrespeitaria por nada uma decisão do presidente da República. Não existe um país no mundo onde a extradição não é decidida pelo chefe do Executivo. Imagina se essa decisão tomada pelo Judiciário brasileiro acontecesse em outro país, como na França, por exemplo. Seria um absurdo, impensável. E quando eu virei um caso internacional, virei uma moeda de troca para muitas coisas. Se o Lula desse essa decisão antes iam em cima dele, porque me derrotar também é derrotar o Lula. Agora, o objetivo principal da direita brasileira, nesse caso, é afetar o governo Dilma.
Como o senhor recebeu a decisão do Lula?
Foi ato de coragem. Por ser chefe de Estado do tamanho do Lula, com a responsabilidade que tem, envolvido na geopolítica. Claro que a escolha do momento não foi por acaso. O caso Battisti foi usado com outras razões políticas.
Sua extradição abriria que precedentes?
Mudaria a história, porque até hoje os italianos nunca foram extraditados. Então prejudicaria muito. E não só italianos.
O senhor acha que se consumada a não-extradição, a Itália retaliará o Brasil?
A Itália nunca teve força para estar entre os países mais ricos do mundo. Já teve por causa da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] e da máfia que enche os cofres dos bancos do mundo. A Itália sempre foi um blefe. É a Itália quem precisa do Brasil. O que a mídia passa é muita mentira. Na Itália tem muita gente que me defende. Se eu for para lá vai ter bagunça e o Berlusconi sabe disso.
Qual seu sentimento hoje pela Itália?
Já não é meu país. Eu me formei como cidadão do mundo. Quando abandonei a Itália eu ainda era muito jovem. Então, para mim essa coisa da pátria não cola. Não cheguei a isso intelectualmente, como anarcocomunista. Foi pela vida mesmo, pela maneira como eu vivi, por escolha e por obrigação também. Para mim, essa coisa da pátria não tem sentido. Perdeu sentido, digamos.
Quem são seus inimigos na Itália?
Meus inimigos são os que querem esconder os anos de chumbo. A mídia faz de tudo para não colocar o contexto histórico. Governo e oposição são os mesmos dos anos de chumbo: democracia cristã e PCI, Partido Comunista Italiano. O PCI era partido mais stalinista, mas que não podia controlar o poder. Eles foram os mais cruéis para nós. Torturadores. E hoje eles seriam a oposição ao Berlusconi. Mas não existe oposição, o PCI não tem nenhum programa político. Quando Berlusconi, que sabemos quem é, fala que a oposição quer ganhar as eleições com um golpe do Judiciário, está falando a verdade. Como já aconteceu uma vez. Eles chegaram uma vez, entre dois mandatos do Berlusconi, com um golpe. Porque o Judiciário era controlado pelo PCI, o PCI controlava os magistrados italianos. Nos anos de chumbo, os melhores magistrados eram do PCI e continuaram sendo, alguns deles são candidatos. Na ditadura eles organizavam e assistiam sessões de tortura. Torturavam o movimento revolucionário, desde as Brigadas Vermelhas até a autonomia, os PAC. Um deles era Armando Spataro, que não era filiado, mas tem relações com o PCI. Ele era o torturador de Milão. Na Anistia Internacional tem documentação sobre isso. E ele é o procurador que hoje me persegue. Ele é o procurador geral de Milão e ainda é o procurador europeu-italiano de terrorismo.
E qual é o seu vínculo com o Brasil?
Se existe um recanto de patriotismo, ele seria o Brasil. Pode parecer um pouco oportunista isso, mas cheguei aqui, não conhecia ninguém e se criou um movimento a meu favor. Isso acalenta muito o coração.
Quem o senhor procurou quando chegou?
Quando cheguei já tinha minha foto por todos os lados. Sabia que estava sendo monitorado, então, não tomei nenhum contato com os italianos refugiados aqui, nem com nenhum movimento. Tentava preservar a eles e a mim. Mas como eu não posso ficar longe de problemas, subia os morros todos os dias. Sentava no boteco, tomava uma cervejinha e a dona do boteco tinha um filho preso. Ela era analfabeta e me pedia para ler as cartas do filho e também responder. E assim, eu estava aí em três morros, tinha contato excelente com todo mundo.
Quais morros?
Santa Marta, Tabajara e Cantagalo. No Cantagalo, Pavão, Pavãozinho, tudo isso aí. Virei o escrivão dos morros. E eu sempre trabalhei com isso. Na França eu tinha permissão do Ministério da Polícia e do Ministério do Interior para fazer oficinas de redação. Para mim foi natural e todas as viaturas da PM me conheciam, porque em todo morro do Rio tem uma viatura lá embaixo. “Aí vai o gringo”, falavam. Subia o morro para poder me sentir vivo.
Mas quando o senhor chegou, de quem recebeu apoio?
De muita gente, do PT até o PSDB. Quando eu fui preso, o Fernando Gabeira chegou com alguns deputados do PSDB. Claro, eles não sabiam muito bem o que estava acontecendo e logo se afastaram, inclusive o Gabeira. Ele me recebeu no Brasil, me ajudou, mas não como um sujeito político pensante. Me recebeu como um detido dos anos 70, que achava que não iria representar perigo para ninguém, porque já tinha italianos aqui nessa condição. Quando ele se deu conta de quem era eu, ou melhor, do que a mídia fez de mim, ele tomou distância.
Como o senhor se define politicamente?
Sou anarcocomunista desde sempre, por considerar leninismo acabado. Mas sou do anarquismo organizado, um anarcomarxista, porque existe um outro núcleo forte do anarquismo que é individualista.
E como vê o socialismo no mundo hoje?
Acredito que estamos criando condições para o socialismo. A socialdemocracia no norte da Europa, com políticas de bem estar social, avançou. Mas está caindo porque o bloco liderado pelos Estados Unidos, de liberalismo selvagem, que não tem custo com seguridade social, é uma concorrência muito difícil, cruel. A Venezuela está fazendo o melhor que pode. Não avançou mais porque o país não permitia. Era quase feudal. Não se pode achar que trocando de presidente o país vai mudar do dia pra noite. E Cuba, se não fosse o embargo, poderia ser a melhor democracia do mundo.
Qual é a sua avaliação sobre a luta armada?
O Estado nos empurrou para a luta armada porque só assim poderia derrotar o fortíssimo movimento cultural que havia. O movimento revolucionário italiano chegou a ter mais de um milhão de pessoas. Mas caímos na armadilha e acabamos fazendo o jogo do poder. Eu não posso dizer que a luta armada não é viável no mundo inteiro, mas no mundo que eu conheço não é mais. Acho que a revolução é eliminar as classes, mas não passa pelas armas, mas pela cultura e educação.
Saindo da prisão, o que pretende fazer?
Não sei fazer outra coisa além de escrever e trabalhar com coletividades. Pretendo fazer um trabalho social a partir da escrita. Talvez não tenha o direito de fazer política, mas vou fazer cultura. A fronteira aí é tênue, mas como eu gosto de discutir, tudo bem.
O senhor vê riscos se solto?
Há abaixo-assinados de agentes carcerários contra mim, é preocupante. Se acontecer algo comigo, Berlusconi terá de prestar contas.
Maria Mello e Vinicius Mansur
de Brasília (DF)