As
três cruzes ficam entre uma estrada de chão e campos de milho no município de Paisnal,
localidade que uma vez foi uma fortaleza da guerrilha de esquerda nos redutos
rurais de El Salvador. É
fácil passar sem perceber o pequeno santuário, mas ele marca o local de uma
atrocidade acontecida em 1977 que ajudou a transformar Oscar Romero,
arcebispo do país, em uma das figuras mais polêmicas e controversas da história
moderna do catolicismo romano.
A reportagem é de Philip Sherwell,
publicada no sítio do jornal britânico The Telegraph,
17-02-2015. A tradução é deClaudia Sbardelotto.
O Papa Francisco,
um companheiro clérigo latino-americano que defende os pobres, anunciou este
mês que o Vaticanoreconheceu Dom Romero,
tardiamente, como um mártir, depois de ele ter sido morto por um esquadrão da
morte de direita enquanto celebrava a Santa Missa, em 1980.
Esse processo coloca-o em um caminho rápido para a beatificação
e uma canonização possível, algo que foi longamente deixado de lado na política
do Vaticano. Para
figuras poderosas com o ouvido ligado em pontífices anteriores, a oposição
aconteceu porque o arcebispo era um herói da teologia da libertação, a doutrina
de esquerda que promove a justiça social.
Abatido por uma única bala enquanto se preparava para a
Comunhão, seu santo sangue molhou o pão que estava em suas mãos no altar. Sua
morte foi o mais notório e simbólico evento das sangrentas guerras civis da América Central.
Ele
foi assassinado apenas um dia depois que implorou aos soldados, em nome de
Deus, para deterem a matança de civis, em uma poderosa homilia feita na
catedral da capital.
No entanto, quando Romero foi nomeado arcebispo em 1977, ele foi
aclamado pela hierarquia conservadora católica tradicional que apoiava a
oligarquia dominante do país e os militares.
Menos
de um mês depois, vieram os acontecimentos sanguinários em Paisnal. Padre Rutilio
Grande, um sacerdote local e defensor proeminente da
população rural pobre, estava dirigindo seu carro juntamente com um paroquiano
idoso e um coroinha adolescente quando assaltantes os atacaram.
Eles metralharam o veículo com tiros, matando todos os três. O
jesuíta progressista, amigo de Romero, foi o
primeiro sacerdote assassinado do país que deslizava rumo a um conflito brutal,
com suas selvas e montanhas agindo como um campo de batalha da Guerra Fria
entre a União Soviética e os Estados Unidos.
A
indignação estimulou uma conversão na própria visão de Romero sobre a vida. "Quando eu olhei
para Rutilio caído morto, eu pensei: 'Se eles o
mataram por aquilo que ele estava fazendo, então eu também tenho que trilhar o
mesmo caminho'", teria dito ele mais tarde.
Ele
assumiu uma posição cada vez mais radical contra os militares, a pobreza e a
injustiça social e em prol dos direitos humanos.
"Dom Romero não tinha acreditado em todas as
histórias prévias acerca dos excessos dos militares", disse Yesenia Alfaro,
funcionária do município de Paisnal, onde
as bandeiras vermelhas dos ex-guerrilheiros da FMLN estão por toda parte antes das
eleições parlamentares. "Foi o assassinato do padre Rutilio que abriu os seus olhos".
A Santa Sé fez o mesmo ponto esse mês. "É
impossível conhecer Romero sem conhecer Rutilio Grande",
disse o arcebispo Vincenzo Paglia,
uma autoridade do Vaticano que liderou o esforço para homenagear Romero.
De
fato, o Papa Francisco anunciou que o Vaticano abriu o processo de beatificação para
o próprio padreRutilio Grande.
O
caso Romero foi esquecido pelo Vaticano durante anos por causa de preocupações
de alguns acerca de sua associação com a teologia da libertação, o ramo do
catolicismo visto como socialista por muitos clérigos conservadores.
O Papa João Paulo II foi um forte inimigo do comunismo. De
acordo com o então cardeal Joseph Ratzinger (mais tarde, Papa Bento XVI),
a Congregação para a Doutrina da
Fé havia lançado
uma repressão contra a teologia da libertação, temendo aquilo que era visto
pelos conservadores da Igreja como excessos marxistas.
Mas,
em uma de suas primeiras ações depois de se tornar pontífice, o Papa Francisco disse que tinha
"desbloqueado" o processo de Romero.
"Tivemos
que esperar pelo primeiro papa latino-americano para beatificar Romero",
disse o arcebispo Paglia.
"Há claras semelhanças entre o Papa Francisco e Romero, e a sua
visão de uma Igreja pobre para os pobres".
Ele
defendeu veementemente o decreto de que Romero foi um mártir - morto "por ódio à
fé" ao invés de sua política - observando que seu assassino o atingiu
enquanto ele estava rezando a missa.
"Eles
queriam matá-lo no altar", disse o prelado, uma referência histórica ao
assassinato deThomas
Becket, o arcebispo inglês do século XII.
Trinta
e cinco anos depois, ninguém sabe melhor do que Marisa D'Aubuisson o quão divisiva a figura do arcebispo Romero foi e ainda é em El Salvador.
Descendente
de uma das famílias mais poderosas do país, ela era uma acólita do clérigo
enquanto seu falecido irmão, Roberto
D'Aubuisson, era o major do exército amplamente
responsabilizado por planejar e ordenar o assassinato.
"Dom Romero foi tanto a figura mais amada quanto a
mais odiada em El Salvador",
disse ela. "Ele era realmente amado pelos pobres e muito odiado por seus
inimigos políticos, e isso incluía membros do clero, bem como os
militares".
"Nos
anos de terror, Dom Romero foi a voz de todos aqueles que não
tinham qualquer voz própria. Essa notícia deRoma é uma reivindicação de tudo o que eu
defendia e que meu irmão era contra".
"O
dia da morte de Oscar Romero foi duplamente terrível para mim.
Primeiro, eu ouvi a notícia horrível de seu assassinato. E, então, ouvi as
pessoas na rua, gritando que tinha sido D'Aubuisson quem fizera isso".
O
inquérito da Organização das Nações Unidas responsabilizou D'Aubuisson por planejar o assassinato, mas ele
nunca admitiu seu envolvimento antes de morrer de câncer. Para muitos da
direita, ele foi um herói nacional que lutou contra o avanço do comunismo no
auge da Guerra Fria.
De
fato, em um sinal de seu legado duradouro, o partido Arena, fundado
pelo major, está em uma corrida acirrada contra os ex-rebeldes do FMLN conforme pesquisas de opinião para as
eleições de 1º de março.
Fotos: Philip Sherwell/The Telegraph
Fonte:
IHU