A Bíblia respira profecia (Parte 1)
“Se calarem a voz dos profetas...”
Gilvander
Luís Moreira[1]
Palavra de
Javé: consolai os aflitos e afligi os consolados! Ninguém pode tocar o corpo dos
escritos proféticos sem sentir a batida do coração divino.
(Obs.: Esse texto é a 1ª parte do artigo “A Bíblia respira Profecia:
“Se calarem a voz dos profetas ...”, publicado na Revista Estudos Bíblicos,
Vol. 29, n. 113, jan/mar/2012, pp. 37-56, revista que tem como título geral:
Bíblia, uma Paideia libertadora.)
1 – Para começo de conversa.
A Bíblia, se interpretada com sensatez e a partir dos pobres, nos
educa para a vivência profética, o que passa necessariamente por construir uma
convivência humana e ecológica onde o bem comum seja um princípio básico
seguido.
Os grandes desafios da realidade social, eclesial e eclesiástica para as
pessoas cristãs que se engajam nas lutas sociais e na construção de uma
sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável, - também construção de uma
igreja Povo de Deus -, me fazem recordar também os desafios de muitos profetas
e profetisas da Bíblia e de suas profecias.
Quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST - realiza
ações radicais – não extremistas, mas aquelas que, de fato, vão à raiz dos
problemas e, por isso, ferem o coração da idolatria do capital - o ódio dos
poderosos despeja-se sobre os militantes desse que é o maior movimento popular
da América Afrolatíndia. Isso faz
acordar em mim profecias bíblicas, como das parteiras do Egito, dos profetas
Elias, Amós, Miqueias e do galileu de Nazaré.
Antes de passar a palavra às profetisas e aos
profetas da Bíblia, pergunto: Quantos de nós já nos dispusemos a fazer a
experiência de viver sob lonas pretas e gravetos – em condições similares aos
animais no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem de nós
já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeitos aos ataques
noturnos repentinos? Quantos já permaneceram em um acampamento do MST por mais
de um dia, observando o que comem (e,
sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de
vida? Quantos já viram o desespero das mães procurando, aos gritos, pelos
filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por
jagunços?
Sentindo-me na
pele dos Sem Terra, convido você para visitar algumas profecias bíblicas das
parteiras, de Elias, Amós, Miqueias e Jesus de Nazaré, na esperança de que
possam iluminar nossas consciências e aquecer nossos corações para discernirmos
o que é preciso fazer, como fazer e comprometermo-nos de fato com a causa dos
pobres que, com fé libertadora, lutam por direitos humanos, por uma terra sem
males.
1.1 – Uma premissa básica: nosso Deus é
transdescendente.
Muitos perguntam: se Deus existe e é
todo poderoso, por que permite tanta dor, tanta violência e sofrimento no
mundo? Deus é sádico? Está sentado na arquibancada, de braços cruzados, vendo o
sangue do inocente verter na arena da vida? Deus não faz nada? Um sábio, ao
ouvir essas interpelações, respondeu: Deus fez e faz todos nós para sermos no
mundo expressão do Deus que é infinito amor. A única força que Deus tem é o
amor, que aparenta ser a realidade mais frágil, mas é a mais poderosa do mundo.
Só o amor constrói.
JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando.
Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai (abbáh,
em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que perpassa toda a
experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus comprometido com os pobres é um
Deus transdescendente, não apenas transcendente - sua transcendência se
esconde na imanência, o divino no humano. A partir do Êxodo, constatamos como
Javé é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para
libertá-los (Ex 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito está nas águas, permeia e perpassa
tudo (Gn 1,2). Em Jesus de Nazaré, tendo “nascido de mulher” (Gl 4,4), Deus se
encarna, descendo e assumindo a condição humana. No Apocalipse,
Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco
definitivamente (Ap 21,1-3).
Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Esta
característica se reflete em Jesus.
1.2 – Profecia
é sussurro de Deus.
Os oráculos
proféticos, normalmente, são introduzidos com uma fórmula característica: “Assim disse Javé....” ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23). A
expressão “ne’m YAHWEH”,
em hebraico, geralmente traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”,
significa "sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da
profetisa". Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer
silêncio, prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser
amiga/o. Logo, Deus não falava claramente aos profetas, como nós, muitas vezes
pensamos. Deus fala hoje para – e em - nós do mesmo modo que falava aos profetas
e às profetisas. Deus cochicha (sussurra) em nossos ouvidos, sempre a partir da
realidade do pólo enfraquecido, na trama complexa das relações e estruturas
humanas.
Precisamos colocar
nossos ouvidos e nosso coração pertinho do coração dos violentados, para que
nossas palavras possam refletir algo da vontade do Deus da vida. Mais que fazer
cursos de oratória, precisamos de cursos de “escutatória”. Para ouvir os clamores mais profundos dos
empobrecidos, é necessário conviver com eles.
1.3 - A
força e a fraqueza da palavra profética.
Intervenções proféticas que, no tempo do profeta (ou da
profetisa) devem ter provocado calafrios, e ter soado quase como blasfemas,
hoje podem parecer insossas a muitos leitores. Assim palavras de grande
profundidade humana podem passar despercebidas para muitos cristãos. Se os
profetas bíblicos ressuscitassem no nosso meio hoje e atualizassem suas
profecias, provavelmente, suscitariam mal-estar ou escândalo. Eis um exemplo: O
profeta Amós, em pleno século VIII a.C., fez a seguinte profecia:
“Ide-vos a Betel pecar, em Guilgal pecai firme;
oferecei pela manhã os vossos sacrifícios
e no terceiro dia os vossos dízimos;
oferecei pães fermentado, pronunciai a ação de graças,
anunciai dons voluntários,
pois é disso que gostais, israelitas
oráculo de Javé” (Am 4,4-5).
Este texto é quase incompreensível para as pessoas que não
sabem o que é Betel nem Guilgal, desconhecem a expressão “oferecer sacrifícios”
(só ouviram falar de “sacrificar-se”, “mortificar-se”), desconhecem o que são
os ázimos e os dons voluntários. Isso nos revela a fraqueza da palavra
profética. Mas atualizando a profecia, acima apresentada, poderemos, talvez,
apresentá-la assim:
“Ide pecar em Aparecida no Norte,
em Juazeiro do Padre Cícero pecai firme.
Assisti à missa todos os dias,
Oferecei vossas velas e oferendas.
Queimai o incenso da bajulação,
Ardam os incensórios,
Anunciai novenas,
Pois é disso que gostais, católicos.
Oráculo do Senhor”.
Aqui notamos a força da mensagem, sua clareza, brevidade e
concisão. Também é patente a dureza e ironia com a qual se expressa. Em Am
4,4-5 o profeta usa o gênero “instrução”, típico dos sacerdotes. Assim Amós,
usando o estilo de linguagem dos sacerdotes, critica-os com uma ironia fina e
os ridiculariza.
O exemplo acima, nos mostra a força e a fraqueza da palavra
profética. Fraca, porque ficou aprisionada por uma linguagem, uma história, uma
cultura, que não é a nossa. Forte, porque resplandece com todo vigor quando lhe
arrancamos as “sujeiras” do tempo e encontramos o seu sentido “em si” e a sua
mensagem “para nós”.
Para entendermos bem o sentido “em si” de Am 4,4-5 devemos
estudar exegeticamente o texto. Para percebermos a veemência da crítica do
profeta Amós ao culto, explicitando assim a relação de Israel com o culto, devemos considerar o seguinte:
Os versículos 4 e 5 do capítulo quatro de Amós são uma irônica
exortação (seis verbos no imperativo) a caminhar para os santuários de Betel e
Galgala para multiplicar as transgressões, mais do que para adorar Deus. O
caráter irônico dos versículos é sublinhado pela exortação para oferecer um
sacrifício cada manhã, e pior ainda, o dízimo (= a décima parte) a cada
três dias. Dt 14,28 e Dt 26,12 são dois textos que regulam esta obrigação,
estabelecem que a décima parte deve ser paga a cada três anos. Portanto,
pedir para pagar a cada três dias o que deve ser pago a cada três anos é, no
mínimo, uma ironia sarcástica.
Também a ação de graças com a oferta do pão fermentado (v. 5)
contradiz formalmente o que é indicado em Ex 12,15.39; 13,7; Dt 16,3. Da
celebração da Páscoa (Ex 13,3; 23,18; 34,25) até as pequenas “ofertas vegetais”
(Lv 2,4.5.11), tudo deve ser feito sempre com pães ázimos, e não com pão
fermentado. Se comparar esta ironia com Os 8,13, segundo a interpretação
proposta por alguns autores[2],
a ironia não se refere portanto a uma falsa celebração da Páscoa somente. “Cada
manhã” (v. 4) não deve ser traduzido por “na manhã”, como crítica de uma
celebração pascal que devia acontecer à tarde.
Com relação às ofertas
voluntárias pode-se encontrar um
tratamento irônico no incitamento a proclamar e fazer conhecê-las. Essas
ofertas, justamente porque voluntárias, não eram provavelmente reguladas por
específicas disposições.[3] As
concessões sobre a imperfeita qualidade da oferta voluntária, não permitida
para outros sacrifícios (Lv 22,23), nas regras mais amplas sobre o tempo para
consumir a oferta (Lv 7,16; 22,21), assim como a menção delas no último lugar
no resumo de Lv 23,37-38, depois dos “sacrifícios para o fogo”, holocaustos, oblações,
vítimas, libações, dons e votos. Tudo sublinha o caráter privado desses
sacrifícios. Proclamar essas ofertas destrói o seu caráter e
finalidade. Não parece que nem o anúncio (retórico) do salmista dos sacrifícios
que fará nem da proclamação das graças recebidas por Deus (Sl 66,15-16) pode
ser interpretado como justificação ou explicação do relacionamento indicado em
Am 4,5.
Vamos contemplar
como agiram profetisas e profetas da Bíblia. Isso poderá ser uma bússola na
nossa missão na atualidade.
Belo Horizonte,
MG, Brasil, 12 de novembro de 2012.
[1] Frei e
padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR;
bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício
Instituto Bíblico de Roma; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro
do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
facebook: Gilvander Moreira
[3]
Cf. as referências bastante gerais em 2 Cr 31,14; Sl 68,10; 119,108 - no
singular e no sentido “profano”, ofertas voluntárias para a construção do
templo, cf. Ex 35,29; 36,3.