A análise é de Roberto Carlos Ruiz, médico especialista em medicina do trabalho, mestre em saúde coletiva pela Unicamp, assessor de sindicatos de trabalhadores e da Regional Latino-Americana da UITA (União Internacional dos Trabalhadores da Alimentação).
A entrevista é de Gerardo Iglesias e está publicada no sítio uruguaio Rel-UITA, 05-12-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Trabalhar no Brasil pode ser o passaporte para uma doença ou a própria morte.
Sim, pode-se afirmar isso!
Nos últimos anos se notou alguma melhora nessa matéria ou tudo continua igual?
Por um lado parece ter havido algumas melhoras, por exemplo, nas questões de biomecânica e ergonomia. Mas o assunto principal, que articula trabalho e doença, está relacionado com a organização do trabalho, que foi eliminando sistematicamente o chamado ‘tempo morto’. Ou seja, o curto tempo que um trabalhador tem para descansar, para refazer seu sistema fisiológico, sem o qual sua saúde fica ressentida.
Diminuem-se as pausas, enquanto o trabalho se intensifica...
Exatamente. Ambas as coisas prejudicam os trabalhadores. Cada vez há menos ‘tempo morto’, tempo em que se podia ir ao banheiro ou simplesmente descansar alguns minutos. Por outro lado, se intensificou o trabalho: tarefas que antes eram feitas por duas pessoas, agora são realizadas por uma. Como diz Alain Wisner, um reconhecido estudioso da ergonomia francesa, “pode-se sentir mais cansaço por uma hora de trabalho intenso do que por quatro de trabalho relaxado”.
Também se pressiona a estrutura psíquica do trabalhador.
No setor frigorífico, por exemplo, à falta de pausas, ao estresse e à intensidade do trabalho, deve-se acrescentar a monotonia das tarefas. Estou falando de verdadeiros guetos de trabalhos repetitivos, nos quais se faz a mesma coisa, exatamente a mesma coisa, durante oito horas.
Assim, enquanto as grandes empresas frigoríficas no Brasil fazem fusões, se recombinam, articulam novas sinergias, o sistema de produção está levando os seus trabalhadores a uma condição de “velhos prematuros”, de pessoas doentes que sofrerão dores intensas pelo resto da vida. Tudo isso afeta, como se pode inferir, o seu sistema emocional. A depressão já é um fenômeno epidemiológico.
O que fazer para mudar esta situação?
O que estamos fazendo. Por um lado, denunciar e dar visibilidade a esta tragédia em nível nacional e internacional, sobretudo naqueles países que são mercados importantes para as nossas carnes. Além disso, como você disse em reiteradas ocasiões, é preciso democratizar o mundo das relações trabalhistas, porque hoje as fábricas e as plantações agrícolas no Brasil são verdadeiros enclaves autoritários.
Neste sentido, não há outra alternativa senão potencializar o trabalho político dos sindicatos. Ou as organizações sindicais fazem frente a este poder econômico emergente, onde as transnacionais brasileiras na medida que crescem se tornam mais arrogantes, ou as condições de trabalho vão piorar ainda mais.
Que as condições de trabalho sejam melhores ou piores vai depender diretamente da capacidade de organização, denúncia e participação do conjunto dos trabalhadores.
Creio que você toca um tema fundamental: a ditadura continua vigente nas diferentes unidades de produção.
Sim, sem dúvida. É difícil dizer que vivemos em uma democracia quando esta não chegou aos lugares de trabalho. Ali não há discussão, pois não se aceitam as perguntas: a empresa tem todas as respostas às suas próprias perguntas, e não há mais nada.
Por exemplo, as metas de produtividade são marcadas unilateralmente. E são metas desumanas, que em nenhum momento são discutidas com os trabalhadores ou com a representação dos trabalhadores. São aplicadas e ponto final. Essa maneira autoritária de proceder, sem se importar com as consequências, está massacrando as pessoas no setor sucroalcooleiro, onde os trabalhadores morrem de exaustão no canavial. Ou nos frigoríficos, onde os trabalhadores são mutilados pelo resto da vida por conta das lesões ocasionadas por esforços repetitivos.
Como se relata no documentário Carne e osso, se alguém faz a tarefa em 15 segundos, isso é projetado para uma hora e para toda uma jornada, tendo em conta apenas o aspecto da produção, mas não o custo de se manter esse sistema.
Tenho a impressão de que cada vez mais vozes se somam e se articulam para dar visibilidade a este massacre.
Sim, porque as pessoas estão se dando conta do que está acontecendo. E não apenas o movimento sindical, mas também os agentes públicos, inclusive de alguns ministérios e pessoas vinculadas às universidades, professores, etc.
É que no Brasil não podemos continuar produzindo a qualquer preço, a qualquer custo. Temos que pensar no custo-benefício para a sociedade e nos perguntar: será que vale a pena ter esta qualidade de emprego com estes níveis de doença e de mutilação? Vale a penar criar um posto de trabalho que oferece estabilidade de um ou dois anos para uma pessoa e depois, pelo resto da vida, a sociedade toda deve se encarregar de manter essa pessoa?
Por isso, as avícolas têm maiores problemas para contratar trabalhadores...
Exatamente. No Brasil, com um desemprego que beira os 6%, é possível agora optar por um ou outro trabalho. Como bem o assinala Siderlei de Oliveira, presidente da Contag, há empresas que trazem e levam trabalhadores, percorrendo uma distância de 60 e até 80 km. As pessoas que vivem próximas do frigorífico preferem ficar desempregadas a ter que se submeter a esse inferno.