Centenário de Juazeiro do Norte  
Hoje lançamos mão de um tópico do livro 
Milagre em Joaseiro (
Miracle at Joaseiro - tradução de Maria Yedda Linhares), escrito por 
Ralph Della Cava, historiador norteamericano.  
O livro é um dos principais  estudos sobre o mito religioso do Padre Cícero, e foi publicado  originalmente em 1976 (pela editora Paz e Terra). O texto é a tese de  doutoramento de Ralph Della Cava e uma das grandes referências em  pesquisa sobre a atuação religiosa e política do fundador de Juazeiro do  Norte.  
O tópico escolhido para ser aqui  reproduzido é o "Balanço do poder: Joaseiro e o Cariri", que integra o  capítulo 9 ("Joaseiro no Plano Nacional"). No fragmento selecionado, o  autor faz considerações sobre a importância política do Juazeiro e do  Cariri no cenário político cearense entre os anos de 1914 e 1934,  destacando a influência política de Floro Bartolomeu e Padre Cícero.  Mostra também como o Crato e o Juazeiro dividiram uma liderança política  e econômica no Cariri, fazendo com que a região virasse um ponto  importante para as negociações políticas estaduais e até mesmo  nacionais.
  ____
Balanço do poder: Joaseiro e o Cariri  Ralph Della CavaÉ inegável que Joaseiro lucrou, a curto prazo, com a “revolução” 
[a Sedição de Juazeiro].  No final de 1914, a Assembleia do Ceará deu ao município o estatuto de  distrito judicial autônomo (comarca). Concedeu a Joaseiro, também, o seu  próprio Juiz de Paz e um tabelião público (ou cartório de notas),  talvez a instituição jurídica mais importante da República Velha. Em  síntese, a revolução de 1914 completara, no mínimo, o processo de  libertação de Joaseiro com relação ao Crato: a autonomia notarial e  judiciária conquistada em 1914 confirmou a vitória política de 1911.  Agora, em pé de igualdade, Joaseiro e Crato, apesar de das repetidas  tensões, assumiram a liderança conjunta do Vale. Barbalha, que tinha  aspirado a essa participação com o Crato, entrou numa fase de longa  decadência, da qual só começou a sair em 1960. No Crato, o cel. Antônio  Luís também retomou o poder, na qualidade de prefeito e deputado  estadual. A partir daí, sua amizade pessoal e aliança política tácita  com o Patriarca e Floro foram muito importantes para evitar que se  extravasasse o ressentimento do Crato, especialmente quando Joaseiro  assumiu, gradativamente, a posição dominante que hoje ocupa na história  contínua dessas duas cidades.  
Entre 1916 e 1926, o eixo  Joaseiro-Crato dominou o Vale do Cariri. Suas unidades do Partido  Conservador deviam menos aos Accioly (como havia sido nos primeiros anos  do século) do que ao prestígio político do Padre Cícero. Como  vice-governador do Ceará (nas eleições de 1914, passou de terceiro a  primeiro vice-governador), como líder real ou fictício da revolução,  como distribuidor de favores políticos e de mão-de-obra barata em todo  sertão, o Patriarca era coberto de deferência pelos 
coronéis do  Cariri. Somente com seu conselho, eles nomeavam as autoridades locais,  apoiavam os candidatos a deputado estadual e federal; e somente com o  seu endosso eles solicitavam subsídios governamentais para obras  públicas e desenvolvimento econômico. De fato, até 1926, foi concedido  ao Patriarca, pelas instáveis coligações governamentais do Ceará,  considerável mandonismo local em troca de seu apoio e patrocínio  eleitoral. Em contrapartida, o Patriarca — ladeado por Antônio Luís e  Floro Bartolomeu — usou sua influência em prol do Joaseiro e do Vale do  Cariri.  
Não resta dúvida de que o Cariri  tinha, finalmente, alcançado um considerável poder de barganha dentro  da política cearense. Durante as quase quatro décadas anteriores recebeu  poucos benefícios de Fortaleza. Seus impostos, entretanto,  destinavam-se a asfaltar e a iluminar as ruas da capital, assim como  fornecer à classe média de comerciantes do litoral esgoto, água potável,  bondes, teatros, novas igrejas, luxuosos clubes particulares,  hospitais, clínicas e cinemas. O Cariri, durante muito tempo, clamou  contra essa desigualdade, o que explica, em parte, por que os  comerciantes do Vale sempre preferiram negociar com a praça de Recife. O  porto de Recife, por estar mais perto da Europa e do Sul industrial do  que Fortaleza, oferecia mercadorias a preço mais baixo; maiores  facilidades de transporte dentro de Pernambuco reduziam os custo do  comércio de varejo no interior. Apesar do comércio natural que existia  entre o Vale e o litoral pernambucano, era o poder político e fiscal da  eqüidistante Fortaleza que muito tirava do Vale e pouco retribuía.  
Tal  disparidade parece ter sido um fator importante para a participação do  Cariri na revolução de 1913-1914, que deve ser compreendida hoje, com o  recuo do tempo, não como um conflito entre “uma cultura sertaneja  atrasada” e “o litoral civilizado” mas, sim, como uma tentativa do Vale  no sentido de aumentar sua cota de “civilização”, poder e resultantes  benefícios materiais. A chamada “sedição” não foi, pois, uma revolta  para destruir a estrutura de poder do estado mas, antes, o meio violento  expressamente utilizado para obter maior participação naquele sistema,  compatível com a contribuição do Vale ao progresso do Ceará. Que esta  ambição tenha sido parcialmente frustrada explica o fato de persistir  até hoje sentimento regionalista. A origem e a sobrevivência desse  sentimento coincidiram com uma noção significativamente mais ampla de  “regionalismo nordestino” o qual, começando na década de 1920, traduziu  as reivindicações dos habitantes do Nordeste árido por uma participação  maior na crescente prosperidade do país. Tanto no Cariri como no  Nordeste, este movimento acompanhou, paralelamente, o surgimento do  nacionalismo através do Brasil, no qual Padre Cícero também teve um  papel a desempenhar.  
Por enquanto, importa saber que,  logo após a revolução, a influência do Patriarca, política ou qualquer  que ela tenha sido, estendeu-se com rapidez dentro do Cariri e em outros  estados do Nordeste, justificando assim a assertiva, já tantas vezes  repetida, de que Joaseiro era o maior reduto político do Nordeste. Nos  estados vizinhos de Pernambuco e Paraíba, por exemplo, até mesmo longe,  como Alagoas (de onde vieram tantos romeiros de Joaseiro), poucos eram  os candidatos para os cargos políticos que não pedissem o patrocínio do  clérigo. Coube aos próprios governadores do Ceará pagar à sua influência  o tributo mais elevado. A partir de 1917, três dos quatro governadores  eleitos anteriormente a 1930 fizeram uma “peregrinação” pessoal a  Joaseiro, depois das quais as fotografias tiradas em companhia do  Patriarca constituíram um dado importante na literatura da campanha  eleitoral. Mesmo após a morte do Padre Cícero, em 1934, candidatos e  políticos continuaram a visitar o túmulo do Patriarca; muitos chamaram a  si mesmos de “romeiros do meu Padim” com olhos voltados para os votos  dos fiéis do “santo do Joaseiro”.  
A base da influência política do  Patriarca estava, parcialmente, no seu prestígio religioso junto às  classes inferiores. Em grande parte, provinha da atividade constante e  da ambição de Floro Bartolomeu, e era por elas alimentada. Floro, após  sua breve atuação como presidente da Assembleia Legislativa do Ceará  (1914-1915), foi reeleito deputado estadual na legislatura de 1916-1920.  Em 1921, obteve a cadeira de deputado, como “independente” (pelo  Cariri) na Câmara Federal, para a qual fora derrotado nas eleições de  1916. Floro exerceu seu mandato federal até sua morte prematura em março  de 1926. É forçoso acrescentar que seu falecimento marcou o começo do  fim político do Patriarca, prova evidente de que, sem Floro, o título  honorífico de “maior 
coronel do Nordeste brasileiro” jamais teria sido conferido ao Padre Cícero.  
Com o desaparecimento de Floro,  Padre Cícero tentou, desesperadamente, nomear um sucessor, Juvêncio  Santanna, o primeiro Juiz de Joaseiro, afilhado do Patriarca e filho do  conhecido chefe de Missão Velha. Mas o insucesso do Patriarca deveu-se à  decisão dos dois partidos de acabar com a posição de “terceira força”  que o Cariri desfrutava nos assuntos do estado e, dessa forma, negaram  apoio a Santanna. Ora, os interesses do Vale, decidido em manter a  posição vantajosa do Cariri, obrigaram o Patriarca a ser o próprio  sucessor de Floro, o verdadeiro construtor do reino político do Vale. Em  maio de 1926 o Patriarca venceu, facilmente, a eleição para a Câmara  Federal. Mas, devido à sua saúde precária, à pouca inclinação e às  severas críticas que se amontoaram sobre a sua candidatura, partidas dos  políticos litorâneos desgostosos, o Patriarca jamais tomou posse na sua  cadeira. Apesar disso, sua decisão de ceder momentaneamente aos desejos  dos chefes do Vale salvou o Cariri da decadência que lhe havia sido  reservada pelos ambiciosos políticos profissionais do litoral. Dois anos  mais tarde, o Patriarca, apesar das suas más condições de saúde, a  ameaça de cegueira e a sua idade avançada (tinha 86 anos), tentou mais  uma vez reunir o eleitorado em torno de Juvêncio, sua própria escolha  para a Câmara, bem como a do Cariri. Nisso também falhou, e a nomeação  de Juvêncio para secretário do Interior e Justiça, em 1928, foi  arquitetada em Fortaleza para recompensar o Cariri pela perda de um  lugar no Legislativo Federal. A revolução de Getúlio Vargas, em 1930, no  entanto, completou, simbolicamente, a rápida destruição (a partir da  morte de Floro) do Padre e da influência política direta do Cariri: o  novo prefeito de Joaseiro, nomeado pelo governo revolucionário, mandou  retirar da Prefeitura o retrato do Patriarca. Tal fato, que feriu  profundamente o octogenário, representou o fim simbólico de uma era da  história política do Nordeste brasileiro. A morte do Padre Cícero, em  1934, embora desse motivo à apoteose do “santo do Joaseiro” por parte  dos pobres, dos humildes e dos fiéis, foi, em termos políticos, um  anticlímax.