Dia 13 de maio de 2011, o Jornal O Globo, p. 3, publicou Entrevista com frei Gilvander Moreira sobre a decisão do STF que reconheceu juridicamente a União Civil Homoafetiva. A Entrevista enviada, via e-mail, para o jornal não foi publicada na íntegra. Vários cortes foram feitos. Eis, abaixo, a ÍNTEGRA da entrevista.
Frei Gilvander Luís Moreira é padre da Ordem dos carmelitas, mestre
1) Como o senhor recebeu a decisão do STF?
Frei Gilvander: “Com alegria, pois é uma vitória dos Movimentos e Grupos que historicamente vêm lutando pelo direito à liberdade sexual homossexual. Nesse caso, o STF posicionou-se com justiça e equidade. A sociedade está em constante transformação, e esse grupo em questão existe e está no dia a dia vivendo e construindo suas relações à margem da sociedade. Devido a isso o Direito não podia mais se esconder ou por uma venda e continuar negando esse direito par as relações homoafetivas. Nesse caso, o STF deu exemplo de coragem e cidadania. Tornou-se visível o invisível. Declara-se assim o início do fim da hegemonia da moral heterossexual. Abre caminho para a afirmação à luz do dia das mais de 60 mil uniões estáveis entre homossexuais no Brasil (Cf. último Censo do IBGE) que até aqui pagavam um altíssimo preço pela sua orientação sexual. Dia 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, ao decidir por unanimidade reconhecer, juridicamente, a união civil homoafetiva, reconheceu como legítimas e constitucionais decisões que já acontecem em dez estados brasileiros em 1ª e 2ª instâncias e em mais de vinte países. Nessa decisão, o STF está de parabéns. Esperamos que assim prossigam as decisões do Supremo, pois em muitas outras decisões, o STF não tem seguido os princípios constitucionais do respeito à dignidade humana, do republicanismo, da função social da propriedade... deixando campear pelo Brasil uma série de injustiças estruturais, tais como a falta de reformas agrária e urbana.”
2) Como o senhor vê hoje a situação dos homossexuais no Brasil?
Frei Gilvander: “Segundo o pesquisador Luiz Mott (prof. emérito da UFBA), o mais preocupante é que o registro de violência contra a população LGBT vem aumentando ao longo dos anos. “Nunca se matou tanto homossexual no Brasil quanto agora”, afirmou. De janeiro a novembro de 2010, Luiz Mott contabilizou 205 assassinatos entre a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) no País. Mott, que faz o levantamento desse tipo de crime desde 1960, relatou que, entre 1960 e 1969, foram 30 ocorrências; na década seguinte, chegaram a 41. De
3) O senhor considera a sociedade brasileira preconceituosa e intolerante?
Frei Gilvander: “Infelizmente estamos sim numa sociedade preconceituosa, intolerante, hipócrita e cínica. Ainda há muito moralismo, fundamentalismos e sectarismos em segmentos conservadores de igrejas e da sociedade que ficaram irritados e questionam o acerto da decisão do STF. No último censo do IBGE foi declarado que há mais de 60 mil uniões estáveis homoafetivas no Brasil. O movimento que defende os direitos dos homossexuais está crescendo, o que é muito bom. Na decisão do STF - que reconheceu a união civil entre as pessoas do mesmo sexo - não se pode deixar de destacar e parabenizar a luta do Movimento pelos direitos dos homossexuais, que incansavelmente, no Brasil e no mundo, vem marchando pelas ruas, erguendo suas bandeiras, gritando de diferentes formas o direito que agora é reconhecido. Os ministros do STF não criaram uma novidade, mas em cada voto ecoaram os clamores das pessoas homossexuais que lutam pela afirmação de seus direitos há tanto tempo.”
4) O senhor já ouviu confissões de pessoas que se declararam homossexuais? Que conselhos costuma dar para as que reclamam de preconceito?
Frei Gilvander: “Eu já ouvi sim confissões de pessoas homossexuais. Uma, por exemplo, chegou e me disse: “Gostei muito da sua homilia na missa de ontem. Por isso resolvi vir confessar. Frei Gilvander, ser homossexual é pecado?” Diante de uma pergunta tão direta assim ainda no início da confissão, percebi que tinha que conversar antes de responder sim ou não. A pessoa acabou me dizendo que após refletir muito tinha resolvido contar para a família que estava assumindo a orientação sexual homossexual. Disse que estava sofrendo muito, sendo discriminado pela família, por colegas na escola, nas ruas, por onde ia. Disse que resolveu me perguntar se era ou não pecado, porque tinha lido em um livro da Renovação Carismática onde se dizia que não era pecado ser homossexual, desde que não colocasse em prática o sentimento. Ele me disse que não tinha como não colocar
Eu disse ainda que devemos respeitar todos, mas não podemos respeitar todos da mesma forma. Devemos respeitar as minorias - – sem terra, mulheres, negros, deficientes, idosos, indígenas, homossexuais, sem casa etc – nos colocando na e da perspectiva deles para a partir deles nos posicionar sobre o que deve ser considerado justo e ético. E devemos respeitar os diferentes que estão na classe dominante – latifundiário, machistas, racistas, “normais”, fortes, brancos, heterossexuais, especuladores etc – fazendo de tudo para retirar das mãos deles as armas de opressão com as quais discriminam, muitas vezes, inconsciente e involuntariamente.
Sentindo-se compreendida e acolhida, a pessoa desistiu do suicídio. Ergueu a cabeça, levantou-se e foi embora.”
5) A união civil entre pessoas do mesmo sexo ameaça a instituição familiar?
Frei Gilvander: Penso que não por vários motivos. São minorias e há uma grande pluralidade de famílias hoje. Há familias tradicionais; famílias só com mãe e filhos (monoparental); 80 mil famílias sobrevivendo debaixo da lona preta em acampamentos clamando por reforma agrária; milhares de famílias que sobrevivem apertadas em um único quarto de cortiço; milhões de famílias arrochadas em barracos nas favelas; famílias só “marido e mulher” sem filhos etc. Por que não pode haver também famílias homossexuais? Por moralismo? Mais: concordo com Gerson Henrique, que, em monografia sobre Famílias Reconstituídas, pondera: “Sendo o Brasil um estado laico, que consagra o pluralismo, o respeito à diversidade e a autonomia da pessoa, não é coerente que a ordem infraconstitucional estabeleça modelos ideais de família, excluindo outros já existentes no cenário social. Uma vez reconhecida a autonomia da pessoa na formação da sua família e a natureza sócio-cultural desta, o ordenamento jurídico terá de reconhecer-lhes os efeitos apesar dos matizes com as quais se apresentar. Importa destacar o vínculo afetivo e o reconhecimento de pertença dos membros ao grupo por eles designado como família.” No Direito de Família contemporâneo existe uma crescente abertura às distintas modalidades de constituição familiar e a dimensão do afeto é muito considerada na hora de reconhecer direitos, o que considero pertinente eticamente.”
6) Como o senhor entende as referências diretas ou indiretas da Bíblia sobre o tema? Ser homossexual é ser impuro, como sustentam os mais conservadores?
Frei Gilvander: “Na Bíblia, o primeiro relato da Criação (Gênesis 1,1-2,4a) mostra o ser humano profundamente ligado e interconectado a todas as criaturas do universo. De uma forma poética, o relato bíblico insiste na fraternidade de fundo que existe entre todos os seres vivos que são uma beleza. Nas ondas da evolução, Deus, ao criar, sempre se extasia diante de todas as criaturas e exclama: “Que beleza! Bom! Muito bom!” O livro de Atos dos Apóstolos resgata, nas primeiras comunidades cristãs, essa mística ao dizer que não há nada impuro. Tudo é puro, é sagrado. Deus não faz acepção de pessoas, não discrimina. O apóstolo Pedro ressalta a ordem divina de não chamar de profano ou de impuro nenhuma pessoa (Atos dos Apóstolos 10,28). Pedro muda de atitude e passa a perceber que Deus não faz discriminação de pessoas. O importante é a prática da Justiça (Atos dos Apóstolos 10,34-35). O autor da Carta de Tiago nos alerta que Deus não faz distinção de pessoas, mas faz opção pelos pobres. Não é tolerável rico discriminar pobre. (cf. Carta de Tiago 2,1-9). Numa sociedade hegemonicamente heterossexual, os homossexuais são pobres. Por isso, devem ser respeitados e compreendidos.”
7) Como o senhor avalia o desempenho do movimento gay no Brasil?
Frei Gilvander: “Já evoluiu bastante, mas não pode ficar só nas reivindicações corporativistas, ou seja, defendendo só os direitos deles. É preciso se aliar aos outros movimentos populares que lutam pela construção de uma sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente. Fará um bem enorme ao povo quando os vários movimentos populares, que lutam pelos direitos das minorias - que numericamente são maiorias -, atuarem em unidade e solidariamente: os movimentos dos Sem Terra, dos negros, dos indígenas, dos sem casa, dos deficientes, dos homossexuais, dos desempregados etc, enfim, toda a classe trabalhadora unida e lutando pelos direitos de todos, defendendo toda a biodiversidade e construindo uma sociedade que caiba todos.
8) A postura da Igreja em determinadas questões atrapalha a conversão de novos fiéis?
Frei Gilvander: “Há igrejas e não apenas igreja. Por exemplo, na Igreja católica há Igreja instituição - diáconos, padres, bispos e papa – e há a igreja que é povo de Deus. É óbvio que quando membros da Igreja instituição se posicionam de forma moralista, proselitista e autoritária afugentam muitas pessoas. Mas quando membros da igreja ouvem, dialogam e, inspirados no evangelho de Jesus Cristo, testemunham um projeto de vida que busca realizar o grande sonho do Deus da vida, que é vida e liberdade em abundância para todos e para toda a biodiversidade, aí, sim, cativam muitas pessoas para se engajarem em projetos humanizadores.”
9) O que o senhor tem a dizer sobre o uso da camisinha?
Frei Gilvander: “É claro que devemos preservar a vida nossa, do próximo e de toda a biodiversidade. Para isso é necessário várias coisas. É necessário sim usar camisinha nas relações sexuais, por questão de saúde pública e por respeito à sacralidade de cada pessoa. Não podemos correr o risco de contrair HIV e/ou doenças sexuais transmissíveis que matará o outro aos poucos. Isso não tem o apoio do Deus da vida. Mas camisinha não é panacéia para todos os males. Além do uso da camisinha, é necessário, para preservar a vida das pessoas, realizar reformas agrária, urbana e educacional. É preciso mudar o modelo de programação televisiva e dos meios de comunicação. Enquanto houver o sexismo, imoralidades e erotismo sendo trombeteados aos quatro ventos através de novelas e filmes, reduzindo a mulher a objeto, infelizmente só usar camisinha será um paliativo. É preciso educação de qualidade e elevar o nível cultural da sociedade. Estrangular o narcotráfico e mudar a política econômica destinando a maior fatia do orçamento do país, não para pagar dívida pública e investir em infraestrutura que viabilize crescimento das grandes empresas, a fina flor do capitalismo, mas investir pesadamente nas áreas sociais. Isso tudo junto com os uso da camisinha poderá nos levar a vida com mais dignidade.”
10) Sua posição a respeito de tais temas é solitária na Igreja?
Frei Gilvander: “Não. Há muitos teólogos e teólogas, cristãos e cristãs, que partilham conosco essas posições. Todo o povo da igreja que participa da Teologia da Libertação. Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, pastorais sociais e muitos movimentos eclesiais. Na Igreja Instituição há membros que comungam conosco dessa visão mais compreensiva com os direitos das minorias e há também outros profissionais do sagrado que ficam indignados com essas posturas mais ecumênicas e proféticas.”
11) O que ainda há a ser feito pelo direito das minorias no país?
Frei Gilvander: “A luta continua. Luta contra a homofobia, o preconceito e o conservadorismo que só excluem e negam a liberdade e a dignidade constitucionalmente garantidas e biblicamente amparadas. Faz-se imprescindível, como ensinou Paulo Freire, educar para a indignação. Indignação diante das injustiças sociais e das violações aos direitos humanos e planetários. Enfim, é ético seguir o seguinte princípio: No necessário, a unidade; no discutível, a liberdade; em tudo, o amor.”