Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Entrevista com Leonardo Boff

A reportagem é de Jesús Bastante, publicada no sítio Religión Digital, 11-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Leonardo Boff, Hans Küng... Amigos do atual Papa e, no enanto, "castigados" por ele...
Küng e eu somos diferentes. Ele é um grande escritor para um grande público, eu sou um teólogo que fala com as pessoas. Küng dialoga com a sociedade, é um mestre na tolerância, nas relações com o judaísmo. Doeu-lhe muito o fato de lhe tirarem a cátedra e o título de "teólogo católico". Eu simplesmente fui embora sem ir.

Qual é a sua relação com Bento XVI?
Simbolizamos outro tipo de Igreja. Existem duas tradições em disputa: a do Concílio Vaticano II, a do diálogo e aberta ao mundo; e a de João Paulo II e Bento XVI, a do testemunho. Eles não dialogam, não se abrem ao mundo: fazem críticas duras a toda a modernidade, enfrentam-se com os não católicos, dizendo que não são Igreja... Seguem a tese da única religião verdadeira, e isso, em uma perspectiva de globalização e de encontro dos povos, não é viável nem inteligente. É uma postura muito fechada e dogmática. Roma não aceita aprender, só ensinar e impôr suas teses.

A mensagem da Igreja oficial chega às massas?
O problema é que a base da sua teoria parte do convencimento de que, na Igreja, tem que ser poucos, mas puros e irrepreensíveis. Mas a verdade é que existem pedófilos, corruptos... É uma Igreja de convertidos, de elites, não é uma Igreja para a humanidade. Bento XVI tem como modelo os 12 apóstolos: acredita que Cristo criou uma pequena comunidade de eleitos, e o resto é uma massa difusa, sem nomes. Mas o Cristianismo está aberto a todos os que queiram, pode-se encarnar em muitas culturas. E o Papa tem dificuldades para aceitar isso. Em sua opinião, a Igreja surgiu do encontro da cultura judaica, grega e romana, e termina aí... Não incorpora, não aceita o Iluminismo, a Tradição democrática moderna ou socialista. Daí a dificuldade que tem de aceitar a entrada da Turquia na União Europeia.

Onde está a raiz do problema?
A raiz é política. A Igreja hierárquica não convive bem com a democracia. São instituições totalitárias, centralistas, machistas... e a democracia não. A Igreja, lamentavelmente, é uma instituição piramidal, autoritária, que não aceita a democracia como forma de governo ou como estilo de vida. Na Espanha, estão vendo agora: os bispos nunca vão aceitar que se discuta na sociedade o aborto ou a homossexualidade. Imaginam-se portadores da verdade única para todos e querem impôr isso aos demais. A Igreja tem direito de dizer a sua mensagem, mas respeitando outras opiniões: somos uma dentre tantas. E não reivindicar o monopólio.

Na Europa, estamos vivendo uma polêmica sobre a retirada dos crucifixos das escolas...
Eu penso que a decisão não tem que vir diretamente de um tribunal, mas deve amadurecer na sociedade. Diz-se que não nos identificamos, pois muito bem. Os símbolos têm que ser universais, de todos. Dito isso, eu acredito que o Crucificado é mais do que um símbolo, e não só para o cristão. A cruz não é monopólio da Igreja: hoje, metade da humanidade vive crucificada. Por causa da industrialização, do meio ambiente, da pobreza, das mudanças climáticas...

A Igreja desterrou o Concílio Vaticano II?
O Vaticano II foi aprovado pelos bispos do mundo inteiro, mas o aparato eclesiástico nunca o aceitou. Sempre se opôs, e resistiu com dureza a Paulo VI. Quando, depois, chegou um Papa da Polônia, naturalmente conservador e com dificuldades para aceitar o Vaticano II, encontrou sonoros aliados em Roma. A Cúria vaticana boicoteou por dentro o Vaticano II. E o próprio Ratzinger opina que é preciso ler o Vaticano II à luz do Vaticano I. Isto é, a partir do princípio da infalibilidade do Papa. Aí se esvazia todo o conceito de Igreja como povo de Deus. Há uma infinidade de casos na história da Igreja de Papas que se equivocaram, que pecaram, que não fizeram o bem...

Dá a sensação, além disso, de que, enquanto Roma é implacável com os teólogos "progressistas", é mais condescendente com os grupos mais tradicionais. Está se vendo isso com a volta dos anglicanos ou com o diálogo com os seguidores de Lefebvre...
Há um clamoroso caso de desigualdade no tratamento. O Papa trata os conservadores com luvas de seda, e a nós, com punho de ferro. Dialogam como se fossem velhos amigos, e na realidade são. Bento se entende bem com eles, enquanto nos coloca ao lado dos subversivos, dos socialistas, dos que não têm que estar na Igreja. Mas nós somos os que estamos com os pobres, com os marginalizados, os empobrecidos... Somos os únicos que temos mártires, torturados, mortos, assassinados, mártires pela fé... São sinais de uma Igreja que pode mostrar sua verdade, porque entregou suas vidas. Balaguer foi santificado em seguida, enquanto ainda esperamos por Romero ou Ellacuría.

A Igreja de Romero o Ellacuría tem futuro hoje?
É a única Igreja que tem futuro. Porque não se pode globalizar uma instituição ocidental, porque é acidental. A única Igreja que pode ser globalizada é a que tem uma rede de comunidades... Aí pode surgir uma Igreja universal, feita de uma rede de comunidades. Romero e Ellacuría são símbolos, considerados santos pelo povo, como na Igreja primitiva. Os cristãos são herdeiros de um torturado, de um perseguido político. O cristão tem em Jesus um exemplo fantástico, e se sente isso na América Latina. No entanto, quando se ouve na Europa a pregação de um bispo, chega-se a duvidar se Jesus morreria na cruz ou deitado em uma cama acompanhado dos bispos. Jesus sofreu porque lutou, porque se pôs na pele dos que sofriam, e não nas dos poderosos.

Como Leonardo Boff se sente dentro da Igreja?
Eu me sinto dentro da comunidade cristã, como lugar espiritual. Mas vivo isso a partir da perspectiva latino-americana, que tentou traduzir o Vaticano II em suas próprias condições. Abertos ao mundo, que significa abertos ao submundo, às pessoas modernas, aos pobres, aos indígenas, aos esmagados... Fizemos uma tradução dentro de nossas condições. Isso permitiu a saída de uma Igreja de base. Essa é a reflexão da Teologia da Libertação. Eu estou dentro dessa tradição, em comunhão ativa e crítica com a Igreja universal. Vemos que ela é muito eclesiocêntrica. O grande problema não é a Igreja, mas sim a humanidade ameaçada, a globalização. A Igreja romana não tem nenhum discurso nesse sentido. Bento XVI toca nisso em sua encíclica, mas só no final, pedindo a reforma da ONU, que é um passo interessante. Mas se lermos toda a encíclica, no fundo ele diz que a crise é de funcionalidade do sistema e não vê que é o sistema que produz a pobreza, a devastação da natureza...

Fonte:IHU