Ángel Darío Carrero, ofm *
Quando o senhor começa a assumir, como ponto de partida da teologia, a realidade da violência e da pobreza na América Latina e no Caribe?
Comecei a trabalhar em março de 1964. Houve uma reunião convocada por Iván Illich. O conheci quando estava, todavia, em Porto Rico, em 1960. Foi Iván que convocou uma reunião muito informal em Petrópolis para que disséssemos como víamos o trabalho da teologia na América Latina.
E qual foi sua colaboração?
Falei de teologia como uma reflexão sobre a pastoral e sobre a vida cristã. O mesmo que formulei mais tarde como reflexão crítica sobre a práxis à luz da fé.
O primeiro que surge é o estabelecimento de um método que parte da vida real para iluminá-la à luz da Palavra de Deus e abrir caminhos concretos de libertação?
Sim. Eu passei praticamente todos os meus estudos de teologia preocupado com a questão do método. Daí a frase: ‘nossa metodologia é nossa espiritualidade’.
O tema da proximidade aos pobres não é novo; porém, sim, a indagação sobre as causas da pobreza e a luta contra a pobreza como parte da identidade cristã. Quando começa essa transição?
Me convidaram para falar sobre a pobreza em Montreal, em 1967. Queria tomar distância de Voillaume, o autor de ‘En el corazón de las masas’, porque ele evitava qualquer perspectiva demasiado social em torno à pobreza; porém, a verdade é que não se pode evitar o fato social. Falei sobre três noções bíblicas em relação à pobreza: primeiro, a pobreza real ou material, vista sempre como um mal. A segunda é a pobreza espiritual, como sinônimo de infância espiritual. A pobreza espiritual é colocar minha vida nas mãos de Deus. O desprendimento dos bens é conseqüência da pobreza espiritual. E a terceira dimensão é a solidariedade para com os pobres e contra a pobreza. Voillaume fala que temos que ser pobres. Sim, muito bem; porém, para quê? Que sentido tem? Não é unicamente para santificar-me. Teríamos que ver o que isso significa para o outro.
Algum outro elemento importante dessa arquitetônica inicial?
Uma preocupação: como anunciar o Evangelho hoje? A teologia é feita para anunciar o Evangelho, a serviço da Igreja e da comunidade. Tantas faculdades pensam a teologia como metafísica religiosa, não como anúncio histórico de libertação.
Quando esse novo modo de pensar a fé a partir da perspectiva do pobre e do excluído começa a chamar-se ‘teologia da libertação’?
Isso será em 22 de julho de 1968, em Chimbote, Peru. Pediram-me para falar sobre ‘teologia do desenvolvimento’ e me neguei. Disse-lhes que falaria sobre a teologia da libertação, que era mais pertinente em nosso contexto. Outra coisa que estava na moda era a ‘teologia da revolução’, da qual também tomei distância. O perigo da mesma era que pretendia cristianizar um fato político.
Diferente de outros, o senhor nunca esteve de acordo com partidos ou grupos como a Democracia Cristã, nem com ‘Cristãos pelo Socialismo’, apesar de acentuar a dimensão política da fé. Por quê?
Nunca gostei de que ‘cristão’ fosse usado como adjetivo. ‘Cristão’ é um substantivo. Sempre disse: ‘sou cristão por Cristo, não pelo socialismo’. Se, como cristão, alguém faz uma opção pelo socialismo, isso é outra coisa. Porém, não posso deduzir o socialismo pelo caminho da Bíblia. Da Bíblia deduzo a opção pela justiça, a opção pelo pobre. As pessoas, quando não entendem isso, dizem: ‘tu negas a política, estás do lado contrário’. Eu respondo que também creio na autonomia do social e do político.
Quando começa a idéia de formar o livro que se converterá em texto fundante da teologia latino-americana contemporânea: ‘Teologia da libertação. Perspectivas’?
Na realidade, não pensei em escrever um livro propriamente. Trabalhava nos temas que me interessavam e, pouco a pouco, foi saindo. No começo de 1969, após Medellín, uma comissão ecumênica sobre temas de desenvolvimento me convidou a Genebra. Então, retrabalhei a palestra que havia dado em Chimbote e, assim, continuei ampliando.
Teve oferta concreta de alguma Editora?
Não. Porém, passou Miguel d’Escoto, de Maryknoll, que acabava de fundar Orbis Books. Viu o livro e me disse: ‘vou publicá-lo’. Foi o primeiro livro publicado por essa editora. O traduziram e o publicaram em 1973, e tem sido o livro mais vendido dessa editora. Depois, passou o editor de Sígueme, da Espanha, e fez o mesmo. Outro que se interessou foi Gibellini. A edição italiana é, inclusive, anterior à espanhola. Já está traduzido para dez ou doze línguas, também para o vietnamita e para o japonês.
Qual é a oposição principal que o livro recebe?
Eu diria que, mais do que oposição ao livro, era oposição à teologia da libertação. Muita gente já estava escrevendo sobre o tema. Criticava-se o enfoque marxista da análise da realidade; porém, eu não me sentia aludido. A oposição mais forte que tivemos não veio de dentro da Igreja, mas de alguns componentes da sociedade civil -representantes dos poderes econômicos, militares, políticos.
A discussão aberta é signo de uma teologia que diz algo ao homem e à mulher de hoje, que gera diálogo crítico não somente no interior da Igreja, mas com a sociedade.
Boa parte das reações vem da acolhida que teve. Se eu tivesse permanecido em um ambiente de intelectuais, não teria tido esse impacto. Houve uma acolhida na base, inclusive com expressões que nunca me convenceram, mas que nascem da boa vontade, que dizem: ‘eu sou da teologia da libertação’. Porém, a teologia da libertação não era e nem é um clube no qual alguém se inscreve; nem um partido. Declaravam-se membros e diziam o que queriam e nem sempre correspondia ao que eu pensava. São coisas inevitáveis.
Porém, há também uma necessidade de encontrar falhas em uma teologia que provém do Sul.
Um jornalista estadunidense me perguntou: ‘o que a teologia da libertação pensa sobre esse problema mundial?’ Eu disse-lhe: ‘você crê que isso é um partido político e que eu sou o Secretário Geral? Pois, não é assim’. Disse-lhe também: ‘por que você não pergunta a Metz (Juan Bautista): o que pensa a teologia política européia desse problema mundial? A ele não; mas a essa teologia, sim. Claro, porque aquilo, sim, é teologia. Metz é alemão’. Algumas pessoas reagiam desse modo porque pensam que algo que vem da América Latina tem que ter grandes falhas. Tem que encontrá-las de qualquer maneira. Se tu és latino-americano, tem que haver alguma posição esquisita. O que querem é coisificar uma teologia.
Se nos deixamos levar somente pelo que está escrito na imprensa, parece que o senhor foi condenado pela Igreja. E não é verdade.
É curioso. No meu caso nunca houve condenação, nem sequer houve um processo. Houve, sim, um chamado ao diálogo; perguntas que sempre estive disposto a responder.
Parece-lhe válido esse tipo de diálogo?
Sempre acreditei que a teologia se faz no interior da Igreja. Na Igreja há carismas distintos. Podemos perguntar a quem escreve teologia que dê razão de sua fé, assim como damos razão de nossa esperança. Com esse nível de perguntas, não há porque se ofender.
Quanto tempo durou o diálogo?
Começou em 1983 e concluiu de várias maneiras; porém, oficialmente, faz cinco anos. Durante muito tempo houve silêncio. Não houve nada comigo.
O que diz o texto oficial?
A expressão é que tudo foi concluído satisfatoriamente.
Teve vários encontros cara a cara com o Cardeal Joseph Ratzinger?
Sim, para grande parte deles não fui convocado, mas eu mesmo tomei a iniciativa. Ratzinger é um homem inteligente, educado e, dentro de sua própria mentalidade, evoluiu, entendeu muitas coisas. Em uma ocasião, em Roma, me disse que havia lido meu livro sobre Jó. Eu mesmo lhe enviava meus livros. Sempre acreditei que a distância cria fantasmas. Disse-me que tinha gostado e que os teólogos do Sul tínhamos poesia; que a teologia européia era mais fria.
Seu modo de proceder tem sido sempre pouco conflitivo, enormemente dialógico e carente de dramatismo. Alguns crêem que corresponde à sua personalidade; porém, creio que aqui há algo profundamente eclesial.
Exato. Tudo vem de que o mundo que mais fala à minha vida não é o mundo intelectual. Não é a defesa de minhas idéias porque são minhas. Interessa-me a vida da Igreja, o anúncio do Evangelho e a vida das Conferências Episcopais.
A teologia carrega a marca de seu tempo. Estamos claramente entrando em outro tempo no qual não se sente a mesma urgência e se abrem outras rotas à fé.
Até os 40 anos nunca falei da teologia da libertação e creio que era um cristão de verdade. Assim, serei cristão depois da teologia da libertação. Quando me falam que a teologia da libertação já morreu, eu digo: ‘veja, não me convidaram para o enterro e creio que tinha algum direito’. Depois, digo-lhes: ‘creio que um dia, sim, morrerá’. Entendo por morrer o fato de que não tenha a mesma urgência que tinha antes. Isso me parece normal; foi uma colaboração à Igreja em um determinado momento.
Creio que faz bem em não converter a teologia da libertação em um ídolo, em uma ideologia à defensiva.
Não temos que transformar uma teologia em uma nova religião. Essa é a tendência da sociedade civil. Alguns pensam que a teologia da libertação é uma espécie de cristianismo distinto; o meu cristianismo. E falam isso como se fosse um elogio, não para criticar. Não crêem no cristianismo, mas na teologia da libertação. Pois, sinto muito: o importante é o cristianismo, não a teologia da libertação. A teologia da libertação somente pode ser entendida no interior do cristianismo.
O senhor não acredita que antes se falava de pluralismo teológico, porém, na realidade, era sobre um pluralismo limitado, isto é, dentro de uma mentalidade quase exclusivamente européia?
Sim, e, todavia, na academia teológica fala-se de nós como teologia contextual, um pesar que mantém uma estreita relação com a realidade. Quando me dizem isso, eu lhes digo para incomodar: ‘ai, você tem uma idéia muito má da teologia européia. Me está dizendo que não são contextuais; que é uma teologia que não tem relação com a realidade. Uma teologia no ar. Eu não creio nisso’.
O senhor já teve que lutar contra certa pretensão de superioridade?
Muitíssimo. Chamar ‘contextual’ a uma e a ‘não contextual’ a outra é um exemplo. Todo pensar corresponde a um contexto. Mais do que um rechaço à teologia da libertação, é uma comunicação com um ponto menor, como se fôssemos algo subalterno. Tem havido muitas coisas nesse estilo. Aceitavam-se as idéias; porém, criticava-se a teologia da libertação. O que é isso?
Estávamos acostumados a que a teologia dialogasse somente com a filosofia e não com as ciências sociais. É uma novidade que demorou a ser aceita, no princípio.
Curioso, porque hoje as ciências sociais estão de cheio dentro da teologia. Essa crítica à teologia da libertação já prescreveu. E tudo isso ocorre apesar de que nunca dissemos que as ciências sociais substituíam a filosofia na teologia, mas que ampliávamos o leque de luzes e de disciplinas humanas para trabalhar o mistério cristão.
Além disso, toda teologia verdadeiramente criadora gera resistências. É a prova de fogo de sua valia.
Evidente. Veja a reação ante o diálogo de Teilhard de Chardin com as ciências naturais. E o exemplo clássico de Santo Tomás de Aquino. Falo de um gigante frente a essa teologia tão anã, como a teologia da libertação. Tomás de Aquino teve resistências enormes; foi condenado pela Universidade de Paris e levou séculos para poder ser reconhecido. Ele incorporou uma filosofia que provinha de um pagão; a repensou; a retomou; a misturou.
Acredita que já estamos em um novo e melhor momento?
O momento mais duro e polêmico ficou para trás. Deve ficar para os historiadores. E é muito bom dizer que já passou. Se algo realmente morreu foi esta polêmica. Eu creio que já é tempo de baixar o tom.
Há um texto no qual o senhor reflete sobre o contexto atual da globalização e da pós-modernidade e para os desafios que a teologia apresenta. Refiro-me ao ensaio ‘Onde dormirão os pobres?’. Aí começa a fazer uma crítica à tentação de fazer da própria teologia um ídolo.
Quando transformo alguma coisa que não seja Deus em um absoluto, caio na idolatria. Escuto dizer: ‘teologia da libertação ou nada’. Eu nunca disse: ‘se você quer compreender a Cristo, leia a teologia da libertação’. Agora, se alguém me pergunta se creio que lendo sobre a teologia da libertação vai compreender algo importante sobre o Cristianismo, creio que sim.É provocador dizer isso porque também a justiça pode converter-se em um ídolo. Vejo pobres serem maltratados por pessoas que se crêem mais politizados do que eles. Fiquei marcado por algo escrito por Pascal, que li quinze anos atrás: ‘o abuso da verdade é pior do que a mentira’. Uma pessoa pode ter a verdade e abusar dela. A pessoa é sempre mais importante.
Sua reflexão mais recente adverte também sobre a intenção de transformar o pobre em um ídolo.
Isso vem do romanticismo de alguns. Há pessoas que me dizem: ‘aprendi tudo com o pobre, o pobre é tão bom!’. Às vezes, brincando, digo-lhes: ‘você acredita que todos os pobres são mesmo bons e generosos, pois eu não aconselho que você vá ao meu bairro às duas da madrugada, pois ficará nu, como nasceu, só que mais velho’. É uma maneira de dar a entender que a opção não se faz porque o pobre é bom, mas porque Deus é bom. Se o pobre não é bom, a opção é a mesma. Muita gente se decepcionou porque acreditava que o pobre era bom. Se tivessem assumido compromissos porque Deus é bom, todavia estariam comprometidos.
De fato, em um artigo seu intitulado ‘San Juan de la Cruz en América Latina’ deixa anotado que abrir-nos à dimensão mais mística da fé nos ajuda a evitar esse caminho idolátrico (que, apesar de falar de libertação, não liberta).
A mística tem a capacidade de ajudar-nos a depurar a noção de Deus. Observando o desenho de São João da Cruz, vemos que a partir da ladeira do monte não há caminho. Isso é a mística. Um caminhar em direção ao Senhor. Continuar, fazendo d’Ele, conforme avança, nossa vida, nosso único absoluto.Sem essa dimensão mística, não existe verdadeiro compromisso com os pobres. Pois bem, temos que mudar a noção de mística. Não é como se diz por aí: sair desse mundo. Não se trata de transmitir uma mensagem, mas de ‘transmitir o contemplado’. A isso temos que agregar a intuição de Nadal: ser ‘contemplativos na ação’.
O que, às vezes, se anuncia como mística, inclusive teólogos importantes ou estudiosos, todavia tem excessivas reminiscências neoplatônicas negadoras do corpo e da história.
A mística não é um desinteressar-se deste mundo. Todavia há pessoas que pensam que alguém que não pisa na terra é muito místico. Se o pobre não importa, não estou seguro de que se trata realmente de uma experiência mística. É interessante que uma mística, Teresinha de Lisieux, seja padroeira das missões.
Progressivamente, parece que o senhor tem insistido na poesia como melhor linguagem para falar de Deus. É isso?
A poesia é a melhor linguagem do amor. Deus é amor. A melhor linguagem para falar de Deus é a poesia. Uma linguagem profunda que vê o mundo e vê a relação a partir da dimensão e da profundidade que o conceito não oferece. Mesmo que não escrevamos poesia, a teologia deve ser sempre uma carta de amor a Deus, à Igreja e ao povo a quem servimos.
[Autor de ‘Llama del agua’ (Trotta, Madrid 2001) y ‘Perseguido por la luz’ (Trotta, Madrid 2008). Esta entrevista foi publicada originalmente em ‘A Revista’, do jornal El Nuevo Dia, de Porto Rico, em 22 de junho de 2008].
Tradução: ADITAL
* Poeta, periodista y teólogo puertorriqueño. Custodio de los Franciscanos del Caribe
Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com