Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

sábado, 14 de fevereiro de 2009

‘O nascimento da biopolítica’. Artigo de Carlo Galli

O artigo é de Carlo Galli, publicado no jornal La Repubblica, 12-02-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Há um tempo, era prerrogativa do soberano decidir se mandava à morte ou deixava vivo um homem (ou uma mulher): hoje, pelo contrário, trata-se de decidir entre o fazer viver ou o deixar morrer. E essa decisão se colocou na ordem do dia porque a normalidade constitucional liberal-democrática está vacilando, ela que buscava manter a vida e a política o máximo possível distantes e separadas: segundo a nossa opinião, de fato, a política não compreende diretamente a vida, mas a protege, deixando a sua livre disponibilidade ao cidadão, reconhecendo-lhe o direito crucial de recusar os cuidados médicos (artigo 32 da Constituição italiana). A soberania da lei do Estado liberal e democrático confere ao indivíduo a soberania sobre si mesmo, sobre a própria vida e sobre o próprio “deixar a vida”.

O que ocorreu confirma que essa distinção se enfraqueceu, isto é, que o discurso político já é diretamente discurso sobre a vida, que o pode político se torna poder de vida, que já é biopoder, e que a política é abertamente biopolítica. E toma a forma de uma espécie de alimentação do ser humano, que – para o seu bem, decidido por outros – não pode subtrair-se à tutela e deve ser exonerado do seu direito soberano sobre si mesmo.

O caso de exceção implica uma decisão, é fruto desta. Muitas podem ser as causas contingentes que determinaram o caso Englaro – distrair a opinião pública da crise econômica com argumentações que vão desde o sentimental (a pretensa “condenação à morte” de uma jovem) até o paleopolítico (a constituição “filosoviética”), indicar ao Vaticano, por ocasião dos 80 anos do Concordato, a própria disponibilidade a uma aliança estratégica em nome do autoritarismo ético, colocar em dificuldade o Partido Democrático. Porém, a decisão de [Silvio] Berlusconi [primeiro-ministro italiano] de tentar opor-se a uma sentença definitiva da magistratura com o instrumento do decreto com força de lei foi também a decisão de instituir um percurso que, a partir do curto-circuito entre vida e política, teria que passar do projeto de uma sociedade eticamente protegida para outro âmbito jurídico e político. Isto é, a decisão de propor uma nova normalidade pós-constitucional, de tipo plebiscitário e decisionista: o apelo ao povo para reforçar o poder legislativo do executivo, para tornar o governo o senhor, em geral, da necessidade e da urgência.

A apoderação do corpo de Eluana quis ser também a apoderação do corpo político da República. O cenário que essa decisão nos prospectou consiste, de fato, na perda das distinções entre público e privado, entre religião e política, entre Igreja e Estado, entre povo e Parlamento, entre poder legislativo executivo e ordem judiciária, entre lei universal e procedimento “ad hoc”: “lei salva-Eluana” foi batizado o projeto de lei apressadamente confiado pelo governo a um Parlamento tratado como um “votifício”. E esse mundo indistinto é também um mundo invertido: o Estado liberal-democrático que reconhece ao indivíduo a soberania sobre si mesmo foi definido como o fruto de uma ideologia malvada e mortífera que se quer superior ao cidadão; o Estado autoritário que não reconhece a vontade do cidadão passou, pelo contrário, por liberal. Por meio de várias estratégias (políticas, midiáticas, administrativas) com as quais geriu o caso de exceção, a direita mostrou a sua verdadeira natureza, isto é, considerar que a realidade política é um magma indistinto, moldável a bel prazer: que tudo é possível, sempre que se trate sempre e somente de uma questão de poder.

Mas o caso de exceção exige também uma resposta: a primeira, necessária e corajosa, foi a de [Giorgio] Napolitano [presidente da Itália], em razão da qual o Chefe do Estado pagou e paga o preço de ataques incríveis; mas a oposição, a opinião pública e a mídia devem prosseguir. A resposta não pode ser a enérgica confirmação da Constituição, preciosa fonte de liberdade e democracia justamente por conter as distinções jurídicas e institucionais que a direita anula, justamente porque aquela tem, em si, a decisão pelo liberalismo democrático que comporta também o respeito dos direitos soberanos do cidadão.

É esse o tempo, enfim, de uma nova decisão contra o biopoder pelo habeas corpus, contra as tentações plebiscitárias pela normalidade institucional, contra o decisionismo e o autoritarismo pela liberdade e a democracia.

Fonte: IHU