Dezembro / 2008
Frente Social e Popular (FSP) do Paraguai
Campanha Pela soberania do Paraguai sobre seus recursos hidrelétricos
A vitória do Fernando Lugo na eleição presidencial de 20 de abril passado e o início do seu governo em 15 de agosto abriram um novo capítulo na história paraguaia.
Entre os vários significados dessa nova fase está a firme decisão de afirmar a soberania do Paraguai sobre seus recursos hidrelétricos. Desde 1973, sob a ditadura de Stroessner (1954-1989) e nos governos do Partido Colorado que se seguiram (1989-2008), esse princípio básico da construção de uma nação independente foi deixado de lado com a assinatura do Tratado de Itaipu. Como mostramos mais adiante, sua implementação foi ainda pior que o que está escrito.
As principais reivindicações paraguaias em relação a Itaipu
O presidente Lugo apresentou ao presidente Lula, oficialmente, seis reivindicações sobre Itaipu na reunião de 17 de setembro passado em Brasília.
1. Que o Paraguai disponha livremente de sua energia, e
2. Que o país receba um preço justo pela energia que vende.
Os dois primeiros temas estão estreitamente vinculados entre si. Pelo Tratado de Itaipu, a cada país (Brasil e Paraguai) corresponde 50% da energia gerada pela usina. Era claro em 1973, no momento da assinatura, que o Paraguai não consumiria essa grande quantidade de energia por um longo tempo. Então, como se deveria proceder com essa parte não consumida pelo país? Simples, até o presente, o Paraguai é obrigado a “ceder” ao Brasil e recebe em troca uma “compensação (monetária) pela cessão de energia”.
A energia de Itaipu tem um custo definido pelo Anexo C do Tratado conforme a tabela que reproduzimos abaixo. Pelo Tratado, a tarifa ou preço = custo. Os dois países, quando contratam sua parte (50% de cada um), devem pagar a Itaipu esse valor. Quando o Brasil recebe a energia que o Paraguai não consome, paga um adicional ao Paraguai, que é o que está registrado na tabela.
Custo anual da energia de Itaipu. Ano 2007 (quanto se paga pela energia e quem recebe)
Conceito - Valor, em milhões de US$
Parcela anual da dívida (tudo vai para Eletrobrás) - 2.085
Gastos de exploração, administração e supervisão - 643
Royalties (metade vai para o Paraguai, metade para o Brasil) - 428
Remuneração do capital (metade para ANDE, metade para Eletrobrás) - 44
Custo total - 3.200
Preço da energia cobrado por Itaipu = custo total dividido por 75.000 GWh (“energia garantida”) = 42,67 US$/MWh
Custo anual da energia de Itaipu. Ano 2007 - quanto se paga pela energia e quem recebe)
Pela energia que Paraguai cede ao Brasil, este país paga um valor a mais de “compensação pela cessão energia” = 2,81 US$/MWh
Total recebido pelo Paraguai pela cessão – 104
Desse quadro, resulta que a energia paraguaia de Itaipu custa à Eletrobrás por volta de 45 US$/MWh, mas o Paraguai recebe pouco mais de 8 US$/MWh (“compensação” + royalties) e do restante, a maior parte (75%) é para pagar a “dívida” com a própria Eletrobrás!
O Tratado de 1973 foi resultado de um conjunto de negociações que tiveram como antecedente a assinatura da Ata de Foz de Iguaçu em 1966. A Ata está incorporada ao Tratado e afirma que, em relação à energia não consumida por um país (o Paraguai), o outro teria “direito de preferência”. Ou seja: poderia ter essa energia desde que pagasse igual ou melhor que outras ofertas. Por isso, a Ata fala em “preço justo”. Mas para que se possam receber outras ofertas de compra da energia, ela deve estar disponível (“livre disponibilidade”) para ser oferecida no mercado regional (Argentina, Chile, Uruguai).
Porém, depois de incorporar a Ata, no restante do Tratado, o critério foi modificado para forçar o Paraguai a ceder a energia com valores pré-definidos fora de toda referência de mercado. Qual a razão para o Paraguai “ceder” sua parte da energia ao Brasil, que paga em torno de 45 US$/ MWh (custo + compensação) ao longo dos últimos anos, se havia compradores interessados em pagar mais na região?
Pior ainda. Mostramos que, em 2007, a tarifa foi calculada dividindo os custos por 75.000 GWh (energia “garantida”). Com a venda dessa energia, Itaipu pagou 100% dos seus custos no ano. Porém, nesse ano, Itaipu produziu 92.000 GWh, ou seja, mais 17.000 GWh! Essa energia é quase de graça (custa apenas por volta de 5 US$/MWh), já que é considerada um “excedente”, ou energia não garantida, produzida a mais depois de pagar as contas de Itaipu. Sobre ela somente se cobram royalties.
Pois bem, há anos, a maior parte dessa energia quase de graça vai para o Brasil (78% x 22% para o Paraguai), violando o princípio de que toda a produção de energia deveria ser dividida meio-a-meio. Isso tem dado grandes ganhos financeiros extra às empresas brasileiras de energia. Trata-se de um recurso que deve ser devolvido ao Paraguai (seja em dinheiro, seja em energia), porque as empresas brasileiras de energia a obtiveram de forma ilegal (violando o Tratado).
Houve uma visível deterioração no valor recebido pelo Paraguai da energia vendida ao Brasil, em relação aos benefícios que o Tratado prometia em abril de 1973. Por exemplo, hoje, o valor recebido pelo Paraguai corresponde a 25% do que era recebido em 1973, quando da assinatura do Tratado – utilizando como referencial a quantidade de petróleo que se pode adquirir em cada momento com o valor pago pela energia ao país (o barril de petróleo estava em 70 dólares em outubro/2008).
Não seguir critérios de mercado pode ser una política justa para reparar assimetrias entre países. È isso que faz a Venezuela, por exemplo, quando vende seu petróleo a países pobres e sem hidrocarbonetos por um preço abaixo do mercado internacional. Isso se justifica se é para subsidiar e ajudar os países mais pobres, mas não tem nenhum cabimento no nosso caso. Entre muitos indicadores econômicos e sociais, podemos mencionar que o Paraguai tem, em termos percentuais, três vezes mais indigentes que o Brasil. Aqui é o país mais pobre, o Paraguai, subsidiando o país mais poderoso, o Brasil!
O que o Paraguai reivindica é que seja aplicado o critério definido pela Ata. Nesse caso, o Brasil continuará a ter a “preferência”, desde que pague o “preço justo” pela energia. Mas como veremos mais adiante, o Paraguai propõe que a “libre disponibilidad” se dê em um contexto de integração regional elétrica no Cone Sul e dentro de uma estratégia em que ganhemos todos.
1.3. Revisão da dívida Itaipu.
A regra que rege Itaipu é que os países consomem sua energia (Brasil e Paraguai) e pagam por ela um valor equivalente aos custos operacionais e financeiros. Mas como ficou claro na tabela acima, 65% do custo total é referente ao pagamento da dívida da empresa binacional. Porém, qual é a origem e caráter dessa dívida que hoje está por volta dos 20 bilhões de dólares?
Vejamos um dos casos questionados pelo Paraguai. O Tratado afirma que Brasil e Paraguai devem pagar pelo consumo da energia de Itaipu seu custo (incluído o custo de pagar a dívida contraída para financiar as obras). Porém, o Brasil solicitou pagar menos desde que a usina começou a operar, em meados da década de 1980,e por vários anos pagou menos que o custo. O que se deixou de pagar se acumulou como nova dívida de Itaipu! (o que está expressamente proibido pelo Tratado). Não se considerou como dívida de quem comprou e não pagou toda a conta.
As grandes beneficiadas por essa decisão foram, obviamente, as empresas elétricas do Brasil, que consumiram 98 % de toda a energia gerada nesse período. Esse total que deixou de ser pago foi incorporado ao principal da dívida de Itaipu e pago através da tarifa nos anos seguintes a 1997. Se aquela nova dívida fosse convertida em valores de hoje e paga por quem a criou (que não foi Itaipu, mas as empresas elétricas do Brasil, 98%, e Paraguai, 2%), o passivo seria reduzido drasticamente ou chegaria a perto de zero (e com ele, o “custo” da energia, que é basicamente pagamento das dívidas). Isso quer dizer que a maior parte do principal custo que hoje se paga pela energia de Itaipu teve sua origem na violação do Tratado!
Há ainda outras irregularidades que teriam igualmente “inflado” a dívida de Itaipu que os negociadores paraguaios propõem discutir. Em todos esses casos, se enfrenta o obstáculo de que a “binacionalidade” supostamente não permitiria que uma parte (Paraguai) investigue as contas da outra (Brasil, Eletrobrás). Porém, o Brasil não aceita fazer uma auditoria independente dessa dívida (e a dívida de Itaipu é quase toda com a Eletrobrás).
O caso acima descrito, como outros, demonstra o contrário do que se afirma no Brasil. O Tratado de Itaipu pode sim ser alterado porque já foi alterado em outras circunstâncias, aquelas em que convinha aos interesses das empresas brasileiras de energia.
1.4. A co-gestão plena de Itaipu.
As duas principais diretorias de Itaipu, a Financeira e a Técnica, foram ocupadas até o presente momento por brasileiros indicados pelo seu governo. Essa prática viola o espírito binacional do empreendimento. O Paraguai defende a rotação nesses cargos entre diretores brasileiros e paraguaios, ou que em cada função operem dois diretores (um paraguaio, um brasileiro) com iguais responsabilidades.
1.5. A implementação de mecanismos de auditoria por parte dos tribunais de conta dos dois Estados
A “binacionalidade” foi utilizada como desculpa para que a gestão administrativa e financeira não fosse auditada pelos órgãos respectivos dos dois países. Em 35 anos, nunca houve uma auditoria da dívida de Itaipu, frustrando, assim, todas as suspeitas e questionamentos levantados no Paraguai!
No Paraguai, Itaipu, desde a época de sua construção, tem sido fonte de corrupção, enriquecimento ilícito de governantes e financiamento ilegal de atividades do Partido Colorado. Alguém pesquisou sobre o que aconteceu no lado brasileiro nesses 35 anos?
Porém, os mecanismos de controle sobre as contas de Itaipu dependem de sua própria diretoria brasileiro-paraguaia. Isto é, os mesmos que devem ser submetidos ao controle vão contratar auditorias confiáveis e transparentes das contas e atos administrativos da entidade?
1.6. A finalização das obras inacabadas.
O que o Paraguai reivindica nesse item é que se cumpram compromissos já firmados desde o início das obras. Por um lado, instalar a subestação secionadora na margem direita (lado paraguaio), que é a que permitirá ao Paraguai o uso de quantidades maiores de energia que lhe correspondem. A segunda obra que falta e é a que garantirá a navegação pelo rio através da represa.
Por que o problema se coloca 35 anos depois?
O leitor ou leitora brasileira deve se perguntar: “mas por que esperaram 35 anos para questionar as relações com o Brasil em Itaipu?” Responder isso exige um pouco de história política de ambos os países e de suas relações bilaterais.
O Tratado de Itaipu foi assinado em Brasília em 26 de abril de 1973 por dois governos ditatoriais, o do general Alfredo Stroessner do Paraguai e o do general Garrastazu Médici do Brasil. Não houve debate democrático porque em nenhum dos dois países havia um mínimo espaço democrático. Pior, foi nesses anos que ambas as ditaduras tiveram seus momentos mais violentos e sangrentos. Houve resistência ao Tratado de Itaipu por parte das forças anti-ditatoriais, em particular no Paraguai. Porém, o contexto autoritário em ambos os países não permitiu ir além.
Como o Tratado e sua peculiar aplicação beneficiaram o Brasil, nenhum dos governos depois de Médici questionou nem aceitou que as questões fundamentais fossem questionadas. Do lado paraguaio, quem governou o país até 1989 foi o próprio Stroessner e depois dele vieram governos do Partido Colorado chefiados por pessoas que se enriqueceram ilicitamente com as negociatas em Itaipu desde os tempos de sua construção.
Essa herança maldita só pode ser interrompida com a vitória popular de 20 de abril. O novo governo paraguaio é herdeiro daquelas forças que lutaram contra a ditadura militar, seu entreguismo e corrupção e contra a assinatura do Tratado de Itaipu tal como o proposto pelas duas ditaduras. A campanha pela recuperação da soberania hidrelétrica em Itaipu não é um capricho, é o ponto alto de uma longa luta democrática no país.
E, de fato, o governo Lula inovou em 2008, quando declarou que não há “agenda proibida”com o Paraguai, isto é, que aceita discutir as reivindicações paraguaias. No dia 17 de setembro passado, foi formada uma comissão técnico-política com delegados dos dois países para construir um acordo. Essa comissão está em plena atividade.
A proposta paraguaia de “ganhamos todos”
O novo governo paraguaio reivindica recuperar a soberania do país sobre seus recursos hidrelétricos ao mesmo tempo em que propõe implementar uma verdadeira integração regional na questão da energia.
Três países da região – Argentina, Chile e Uruguai – sofrem problemas periódicos e crônicos de falta de energia. O próprio Brasil sofreu um “apagão” em 2001. O Paraguai tem grandes excedentes exportáveis. Mas não pode fazê-lo porque, em Itaipu, há a cláusula de cessão forçada ao Brasil. Há muitos anos, todos os técnicos da região (incluindo brasileiros) assinalam as vantagens que haveria se todos os países do Cone Sul tivessem uma forte interligação elétrica, sobretudo em matéria de segurança no abastecimento (os ciclos se compensam, quando falta energia ao norte, sobra ao sul e vice versa, os picos de gastos de energia são diferentes segundo os fusos horários mais ao leste ou oeste, etc.) e de preços (os países deficitários poderiam ter acesso a um tipo de energia mais barata que a térmica que hoje utilizam). O Paraguai, nesse novo marco, certamente receberá mais pela sua energia excedente de Itaipu e Yacyretá (outra usina na fronteira com a Argentina), mas seus vizinhos também ganharão.
A defesa do Paraguai de sua soberania sobre seus recursos hidrelétricos está plenamente de acordo com a defesa da integração regional, com o espírito do que está escrito nos tratados do Mercosul e da Unasul.
Por fim, compartilhamos com a atual política externa brasileira os mesmos valores de respeito à soberania de nossos países sobre seus recursos naturais e energéticos. E também de acreditar na integração regional como via para o desenvolvimento sustentável e a construção de nossas nações como atores relevantes no cenário mundial.
Porém, até o presente, em Itaipu, a política externa brasileira tem negado ambos os valores. Não quer reconhecer o direito de outro país, vizinho e amigo, o Paraguai, à soberania sobre recursos hidrelétricos que são paraguaios. E a política externa do Brasil exige que Itaipu continue presa a uma relação bilateral forçada fora do marco da integração regional. As negociações que estão em curso entre os governos Lula e Lugo são a oportunidade de que o Brasil supere definitivamente essa herança neocolonial deixada pela ditadura militar!