Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ALGEMAS PARA QUEM?

Por: Pe. Alfredo J. Gonçalves

A polêmica em torno do uso de algemas no ato da prisão traz à tona, uma vez mais, as disparidades da sociedade brasileira. Os debates fazem lembrar o estudo de Roger Bastide sobre o “país dos contrastes”. No meio das discussões, resta-nos o papel de espectadores diante do fogo cruzado entre Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Polícia Federal, torcendo para que nenhuma bala perdida nos cruze o caminho.

Mas podemos, sim, fazer mais do que isso. Que tal descer da arquibancada, entrar em campo e participar ativamente do jogo! Perguntar, por exemplo, por quê o uso ou não das algemas toma tanto espaço da mídia e da arena política? E a resposta nos levaria à mesma polêmica que costuma cercar os chamados crimes do colarinho branco. Ou seja, quando determinados comportamentos escandalosos, para não dizer criminosos, atingem representantes das camadas médias e altas da população, predomina a hipocrisia. Procura-se envernizar as aparências para encobrir o interior putrefato e os privilégios que, historicamente, marcam boa parte das atitudes relativas às elites dominantes.

Enquanto são os pobres os submetidos a desmandos de autoridades, a excessos truculentos da polícia e a cenas vexatórias e humilhantes – tudo parece muito normal. Fazem-nos desfilar diante das câmaras e holofotes, arrancam-lhes confissões impudicas, exibem seus crimes e misérias com a intenção inconfessada de enlamear-lhes a vida e a reputação. Policiais e delegados, repórteres e comentaristas caem sobre eles com a voracidade de abutres sobre carne podre. E nós, sentados confortavelmente no sofá de nossas casas, sonolentos frente à telinha, quantas vezes acompanhamos tais cenas com o dedo em riste para acusar de “bandidos” e “sem-vergonha” , e para exigir “cadeia neles”!

Para os pobres, a prisão com algemas e a violência da polícia na hora da detenção acaba sendo tranqüilamente “naturalizada” . Para os ricos, isso fere a integridade física e os direitos da pessoa humana. Os primeiros merecem respeito com a possibilidade de entrar em depressão, ao passo que os segundos “não passam de safados!”. O pressuposto, consciente ou não, é de que pobre não tem dignidade para perder. Pode ser exibido como um animal no zoológico.

Ocorre o mesmo com a questão da violência. O tema ganha as páginas dos jornais e as atenções da mídia apenas quando os pobres saem às ruas. A violência “estrutural e institucionalizada” , para usar a expressão do documento final da Conferência Episcopal Latino-americana de Medellín, costuma ser invisível, legitimada e acobertada pelos poderes públicos e pelas leis. Mas a reação a ela, seja através de atos desesperados e individuais, seja através de ações sociais organizados, tem imediata visibilidade e costuma ser rumorosa. Daí a confusão e o engano.

Esquecemos que, no fundo, a verdadeira violência tem aparência bem comportada, é silenciosa, e sabe revestir-se de atos pacíficos. Inversamente, não poucos atos violentos e barulhentos escondem uma profunda e laboriosa aspiração de justiça e de paz. Cada um luta com os méis de que dispõe. Enquanto as classes dominantes contam com todo o arcabouço legal a seu favor, para os pobres sobra o grito, o movimento e, no limite, a ação desesperada. Sem querer, evidentemente, subordinar todos os crimes a fatores sócio-econômicos. Mas eles têm sua relevância, tanto mais agravada quanto mais profunda e estruturalmente a sociedade é marcada por todo tipo de contrastes.