Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

sexta-feira, 18 de julho de 2008

LIXO-QUE-NÃO-É -LIXO; GENTE-QUE-NÃO-É -GENTE.

LIXO-QUE-NÃO-É -LIXO*; GENTE-QUE-NÃO-É -GENTE.
ARISTIDES ATHAYDE**

A buzina do carro, o berro do motorista, acorda o Maiorzinho:- Sai da rua, maloquero de merda! Vai accabar causando um acidente! Todo dia assim. O Maiorzinho já ia embalado pelo andar do carrinho, quandochegaram no viaduto do Capanema.
E ele adorava quando chegavam no viaduto. Adorava ver a força do Pai, puxando firme o carrinho carregado de lixo. Adorava quando a irmãzinha, assustada com a buzina dos carros que passavam, raspando, encostando, com os motoristas xingando, agarrava forte, fincava as unhinhas sujas no braço do irmão mais velho.
Ele, o Celso, o Maiorzinho, ia lá em cima no carrinho. No final da tarde, aslaterais do carrinho lotado e bamba eram calçadas com pedaços de madeirite epapelão. O carrinho ia cheio, entupido até o alto.
Bem no alto de tudo, Celso e a irmã Jéssica, a Menorzinha. Puxando a carrocinha, o Pai. Ao ladoPelé, vira-lata simpático e amarelo, companheiro, trotando, orgulhoso, acompanhando a família.
De seu lugar no monte de lixo, do alto do viaduto, o Maiorzinho tudo via: a Cidade toda, as luzinhas nos prédios, os faróis doscarros, o brilho amarelo da vila lá embaixo...Acordavam cedo. Pouco falavam. Jéssica, a Menorzinha, nem falar falava. Corriam a Cidade durante o dia. Voltavam a noite. E a noite, o Pai, estropiado e sujo, agachado num canto do barraco, repetia o mesmo ritual: Pegava a garrafa - e ai de quem mexesse na garrafa - e levava aos lábios acachaça confortante.
A voz do Pai ia mudando. A fala ia virando música. Amúsica falava da Mãe. Da Mãe que tinha ido embora, que os tinha deixado pratrás. A musica virava grito, o grito virava choro. Um choro cortado esangrado, um choro de dor.
Quando começavam os gritos do Pai, Celso pegava a irmãzinha no colo, ficava escondido, quietinho, do lado de fora do barraco, perto da casinha do Pelé.
Se o dia estivesse frio, chamava Pelé com um assobio e fazia do cachorro seu cobertor. E esperava, esperava, esperava,até que o choro acabasse. E entravam e encontravam o Pai caído, dormindo, babando, deitado no chão. A garrafa amarela em cima da mesa de metalvermelho da Coca-Cola.
Celso buscava o caminhãozinho de plástico, catado nalixeira de um prédio, deitava a Menorzinha. Engolia o que conseguia encontrar pela casa pra fechar o buraco no estomago. Fechar o buraco do peito não conseguia. Aquele buraco, de não ter e de não ser, não fechava nunca.
Mas ele tentava, e tentando, acabava dormindo...
Na Cidade Perfeita, na Cidade que nem lixo tem, na Cidade do Lixo-Que-Não-é-Lixo, milhares de famílias vivem como a família de Celso, como a família do Maiorzinho.
Vivem em condições sub-caninas, vivem como urubus, carniceiros, necrófagos.
Comem o que a Cidade Perfeita rejeita, o que a Cidade de Sonho excreta. Comem o que não serve para as gentes da Cidade de Primeiro mundo. Por que na Cidade Perfeita, na Cidade de Primeiro Mundo, esse é o papel que lhes cabe.
Gente, nessa Cidade linda, ecológica, eles não podem ser. Paraser gente, em Curitiba, é preciso ter dinheiro para o ônibus. É preciso separar o lixo. É preciso gerar lixo.
Para ser Gente, em Curitiba, é preciso andar de bicicleta no parque, passear no Shooping, ir ao Teatro, viver no Centro.
Os habitantes da Cidade Perfeita separam o Lixo do Lixo que não é Lixo e se separam das Gentes que Não São Gentes.
Excluem. Não enxergam.
Ou fingem que não enxergam pessoas e pessoinhas como o Maiorzinho, como a Menorzinha, que não podem ser de Curitiba. Não enxergam carrinhos como o do Pai do Celso, cheios de lixo, duas criancinhas amontoadas em cima de uma montanha de sujeira.
Não enxergam, por que, se enxergassem, a Curitiba na qual acreditam deixaria de existir.
A Curitiba na qual acreditam, a Curitiba do Ecoville, do Champangnat, do Jardim Botânico, passaria a ser a Curitiba do Bairro Novo, do Osternack, do Pantanal, da Vila Érico Veríssimo, da Vila Zumbi, da Vila Pinto, do Cayuá.
A Curitiba, asseadinha e limpa, Suíça ou Belga, a escolhida dos loiros Franceses, seria mais uma cidade brasileira.
Mais uma cidade desigual.
Maisuma cidade como essas que mostram no Jornal Nacional, cheia de pobreza, miséria, fome, violência e feiúra.
A Curitiba de Primeiro Mundo seria, pornão ser crível, a Cidade que Não Existe.
É bem fácil acreditar que Curitiba é um pedaço da Europa, que é igual ao Canadá. E só ligar a televisão e engolir as propagandas da prefeitura.
Propagandas que mostram gente bonita, gente com todos os dentes na boca. E só acreditar nos cartazes que NÃO mostram a carinha suja do Maiorzinho, o medo nos olhinhos da Menorzinha, o sangue na mão e os calos no coração dopai carrinheiro.
Por que na Cidade Perfeita, é melhor ser crédulo. E melhor acreditar em qualquer besteira. E melhor fingir que problemas não existem, que pobrezanão existe. 'Temos que ter orgulho da nossa Cidade', diz o Prefeito, e a nossa Cidade, a Cidade do Lixo que Não é Lixo, não é a Cidade das Gentes que Não são Gente.
E enquanto a Cidade Perfeita segue no carros que buzinam, enquanto a Cidade dos Sonhos brilha nas luzes dos prédios, o Maiorzinho volta a pegar no sono. E dorme. Dorme, mas não sonha. Por que sonhar é luxo. E por que sonhar é para quem ainda acredita.
O Maiorzinho só descansa. Descansa e sobrevive.
* LIXO-QUE-NÃO-É -LIXO é uma marca muito conhecida em Curitiba e no resto do Estado, dá nome a um programa, desde a "era Lerner", de coleta de lixo reciclavel, onde os moradores separam o lixo, e os caminhões de coleta, especificos para este programa, recolhem. Há uma enorme propagada em torno deste programa, com polpudas verbas publicitárias, maiores que o próprio programa, que faz parte de toda uma estratégia de construção da imagem da Curitiba "Capital Ecológica", em que pese a metade da sua população não dispor de serviço de esgoto tratado. (nota de a. goulart)
** ARISTIDES ATHAYDEAdvogado, Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito deCuritiba.Mestre pela Northwestern University - Chicago, Former Chairperson da Camârade Comércio Brasil - EUA (AMCHAM), Membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC - International Chamber of Commerce