E como acontece que ainda hoje a religião, com suas regras e suas
proibições, tem primazia sobre a fé cristã? Enfronhamo-nos em detalhes e
nos esquecemos do essencial. Impomos fardos às pessoas que não têm nada
a ver com o mandamento do Amor. Recusamos o batismo, excluímos as
pessoas, condenamos situações e realidades, não queremos, sobretudo, nos
adaptar ao mundo no qual vivemos, sob o pretexto de que esse mundo está
perdido. E, no entanto, Cristo habita esse mundo e seu Espírito está
agindo na história.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 6º Domingo de Páscoa (05 de maio de 2013). A tradução é do Cepat.
Eis o texto.
Leituras bíblicas:
Primeira leitura: At 15, 1-2.22-29
Evangelho: Jo 14, 23-29
Primeira leitura: At 15, 1-2.22-29
Evangelho: Jo 14, 23-29
Às vésperas da Ascensão, ao ler os textos da Palavra de Deus de hoje,
veio-me uma pergunta: na Igreja de hoje, temos razões para nos
inquietar? A resposta é, infelizmente, sim. E por quê? Porque nós temos
medo de nos deixar perturbar pelo Espírito Santo. É, no entanto, o
convite que o nosso bom Papa Francisco nos fez em sua homilia
de 16 de abril último: “Não resistamos ao Espírito Santo”. A fé deveria
dissipar todos os nossos medos. O Cristo do Evangelho de João nos diz:
“Não fiquem perturbados, não tenham medo” (Jo 14, 27c). Mas a fé não é a
religião, e acontece, às vezes, que a religião asfixia a fé e a impede
de se expressar, o que justifica o medo vivido pela Igreja de se adaptar
às realidades contemporâneas. O que fazer? É preciso mudar,
converter-se, arriscar o futuro, se quisermos ser fiéis ao Cristo da
Páscoa. Mas que mensagens podemos tirar da Palavra de hoje?
1. Amor de Cristo = fidelidade à sua Palavra
“Se alguém me ama, guarda a minha palavra” (Jo 14, 23a). O que isto
quer dizer? Qual é esta palavra de Cristo? É uma palavra que vem de
outro: “E a palavra que vocês ouvem não é minha, mas é a palavra do Pai
que me enviou” (Jo 14, 24b). É uma palavra que não é dita uma vez para
sempre: “Mas o Advogado do Pai, o Espírito Santo, que o Pai enviar em
meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem
tudo o que eu lhes disse” (Jo 14, 26). É, pois, o Espírito Santo que
mora em nós que nos torna capazes de compreender a Palavra de Deus, que
se expressa hoje através de homens e mulheres e que se atualiza
incessantemente na nossa história.
No Evangelho de São João, o Amor de Cristo é sinônimo de fidelidade à
sua palavra; isso significa que a fidelidade, assim como o Amor, não
pode ser congelada no tempo e fixada para sempre num texto sagrado da
Bíblia. A fidelidade, assim como o Amor, está em movimento, em
crescimento, em evolução. O exegeta francês Jean Debruynne
disse que a fidelidade ao Evangelho é viva. Ele escreve: “O
Ressuscitado fala de fidelidade e de fidelidade à Palavra... e, no
entanto, as palavras se desvanecem e os escritos permanecem. Nada é mais
fugaz, frágil e passageiro que uma palavra. E, no entanto, é nela que
Jesus coloca a fidelidade. Afirmando que ela permanece, Jesus conjuga
verbos de ação: vir, enviar, dar, ir, voltar, chegar... Jesus faz,
assim, da fidelidade bem outra coisa que um túmulo, um cemitério ou um
monumento aos mortos. Para Jesus, a fidelidade é uma mudança, uma
conversão. A fidelidade é viva”.
2. Nós permanecemos em Deus
“Se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e
meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23). Isso
significa que Deus não mora mais num templo de pedra, de tijolo ou de
madeira; ele habita o coração humano. Esse Jesus fisicamente ausente por
sua Ascensão, torna-se espiritualmente presente por sua Ressurreição. É
por isso que o Deus que nos habita é o Deus Trindade: Pai ou Mãe, Filho
e Espírito. O que fez o teólogo francês André Rebré
dizer: “O grande vazio aberto na vida dos discípulos e na nossa é o Deus
Trindade que o preenche. Era necessário que Jesus partisse para que a
Trindade fosse mais íntima em nós que nós mesmos”.
O que estamos esperando para nos respeitar nas nossas diferenças?
Pelas nossas forças e pelos nossos talentos? Pelos nossos limites e
nossas fragilidades? Não há nada mais sagrado que a dignidade humana!
Nós somos templos de Deus, morada da Trindade, do Cristo ressuscitado! O
teólogo francês Marc Joulin escreve: “Nada do que toca
a humanidade pode nos ser indiferente, porque tudo toma um valor novo,
recapitulado na Humanidade glorificada de Cristo que será tudo em todos
no último dia. Longe de ser uma religião da evasão, na paz artificial de
um nirvana, nossa fé nos assegura o valor do mundo e da dignidade da
humanidade. A paz que Cristo nos prometeu, sua paz, é uma paz para
trabalhar o respeito e a promoção de tudo o que constitui o homem,
inseparavelmente corpo e espírito. A paz de Cristo é uma paz a ser
construída por nós e, sobretudo, para os outros, o que raramente é
fácil. Mas é aos construtores da paz que Jesus prometeu a felicidade e
que serão verdadeiros filhos e filhas de Deus”.
3. A única regra = Amar
Nos primórdios da Igreja, o livro dos Atos dos Apóstolos nos
apresenta uma controvérsia que surgiu desde o princípio: devemos ou não
impor aos pagãos convertidos à fé cristã as obrigações legais e rituais
do judaísmo? Paulo era hostil a isso, ao passo que alguns missionários
judeu-cristãos queriam impor a circuncisão a todos: “Se não forem
circuncidados, como ordena a Lei de Moisés, vocês não poderão salvar-se”
(At 15, 1). A religião torna-se um obstáculo à fé cristã. Querem impor
regras que não têm nada a ver com a mensagem do Cristo do Evangelho.
Recordemo-nos de São João, na semana passada: “Se vocês tiverem amor uns
pelos outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,
35). Como os primeiros cristãos se esqueceram disso?
E como acontece que ainda hoje a religião, com suas regras e suas
proibições, tem primazia sobre a fé cristã? Enfronhamo-nos em detalhes e
nos esquecemos do essencial. Impomos fardos às pessoas que não têm nada
a ver com o mandamento do Amor. Recusamos o batismo, excluímos as
pessoas, condenamos situações e realidades, não queremos, sobretudo, nos
adaptar ao mundo no qual vivemos, sob o pretexto de que esse mundo está
perdido. E, no entanto, Cristo habita esse mundo e seu Espírito está
agindo na história desse mundo.
Por que as regras que a Igreja faz tornam-se tão importantes, sob o
risco de prejudicar para sempre as pessoas que se afastaram e que
gostariam de se aproximar novamente? Como agentes de pastoral, padres e
bispos querem fazer da nossa Igreja um lugar de acolhida e de abertura
para possibilitar que o maior número possível de crentes possa fazer
parte das nossas comunidades cristãs, viver o Evangelho e levar a
mensagem de esperança e de Amor de Cristo ao mundo de hoje? A única
regra que podemos exigir é amar. Nenhuma outra! Segundo o exegeta
francês Gérard Naslin: “É preciso confiar na ação do
Espírito e no amor fraternal como motores da vida da Igreja. A ausência
física de Jesus é o reverso da sua presença junto do Pai graças à qual
nós estamos conectados com a corrente do amor de Deus”.
Concluindo, há motivos para inquietação? Sim, em relação à religião
que está em vias de matar a Igreja. Não, em relação à fé que pode ainda
ressuscitá-la. É a esperança que mora em mim e que me impede de cruzar
os braços!
Fonte: IHU