A limpeza ética praticada pela presidenta Dilma Rousseff, desde que no ano passado começou a demitir ministros acusados de "malfeitos", associada ao recente desafio de domar aliados rebeldes no Congresso elevaram sua popularidade a nível recorde. Pesquisa CNI/Ibope divulgada na quarta-feira mostrou que a presidenta é aprovada por 77% da população. Para a cientista política Argelina Figueiredo, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no entanto, Dilma Rousseff precisa "ir devagar com o andor" em sua cruzada. "Ela não pode fazer muito depressa", diz a pesquisadora, especialista no estudo das relações entre Executivo e Legislativo. "Nenhum presidente se garante só com uma bandeira anticorrupção", constata.
A reportagem e a entrevista é de Cristian Klein e publicada pelo jornal Valor, 09-04-2012.
Argelina lembra que no presidencialismo um chefe de governo tem mais condições de se arriscar, mas Dilmaprecisa ter o cuidado de não entrar em rota de colisão com o Congresso. Deve se dedicar menos à gestão e mais à política. Em sua avaliação, a presidente, apesar de ter provocado uma turbulência com a troca de comando dos líderes do governo na Câmara e no Senado, de fato estaria tendo a cautela necessária - "não está botando para quebrar".
Por outro lado, pondera Argelina, as ameaças dos parlamentares nem sempre correspondem ao volume do alarido. Eles gritam muito, para ganhar alguma coisa, como já ocorria no governo Fernando Henrique Cardoso. A chantagem existe. Contudo não envolve só cargos e emendas parlamentares, mas também políticas públicas e interesses, como na votação do Código Florestal.
Eis a entrevista.
Até que ponto o comportamento da presidente Dilma, de moralizar as relações políticas, é jogo para a plateia?
Acho que ela está tentando fazer isso [moralizar] e está dizendo que vai fazer. Mas ela não pode fazer muito depressa. Porque se não vai ter a colisão. E colisão não é bom para nenhum dos dois lados. Se estão em jogo benefícios, emenda parlamentar, cargos etc, também estão em jogo políticas. Você não pode deixar de ver. A base da chantagem é: eu não vou votar com essa política. Vai dizer que o Código Florestal é pura chantagem e que não tem interesse nenhum?
O PAC tenta aplacar os problemas de infraestrutura no país, mas seu ritmo é muito lento. Essa poderia ser uma marca do governo Dilma, depois da conquista da estabilidade econômica com Fernando Henrique Cardoso e do avanço social com Lula. Diante do cenário de crise, Dilma encontrou na bandeira da moralização política uma saída para se distinguir de antecessores?
Pode ser que ela esteja procurando o seu lugar. A erradicação da miséria é um aprofundamento da agenda do Lula e para nenhum presidente seria legal ser lembrado por ter consolidado um governo anterior. Pode vir a dar certo. Isso tem apelo grande para a classe média.
Que conselhos você daria para a Dilma?
Devagar com o andor. E que é superimportante gestão pública, mas a presidenta não precisa estar diretamente envolvida na questão, que ela ache outra Dilma. O Abelardo Jurema [(1914-1999) ex-deputado federal, ex-senador e ex-ministro da Justiça de João Goulart] disse que o que faltou ao Jango foi um Jango no Ministério do Trabalho. Porque o [presidente] Juscelino [Kubitschek] teve maior estabilidade porque tinha o Jango no Ministério do Trabalho, por exemplo quando foi tentar implementar o Plano Trienal. Ele precisava ter um Jango que lidasse com o movimento sindical, de tal forma que ele não ficasse radicalizado. Então, a Dilma que arranje uma Dilma, que ela não vá para a gestão e fique na política.
Mas ela tem gosto ou habilidade?
Política não é necessariamente gogó, que nem o Lula. Não pode gritar, nem humilhar as pessoas. Mas não precisa pedir mil licenças. Tem que ter uma atitude política. Saber que com político você tem que lidar politicamente e não administrativamente. Exigir eficiência é bom, e tem que ser feito, é parte da tarefa da presidente. Outra coisa é que nenhum presidente se garante só com uma bandeira anticorrupção. Tem que ter um apelo político.
Ela parece confiar essencialmente no apoio da opinião pública. É suficiente?
Isso é pouco. Um presidente não se sustenta apenas com a luta contra a corrupção. Nem a oposição conseguiu se sustentar. Eu tenho a opinião - diferentemente das pessoas, naquele momento do mensalão e na eleição do Lula em 2006, que diziam que o brasileiro não se preocupava com corrupção - de que esta não é uma boa avaliação daquele período. Não é tolerância com corrupção isso. É simplesmente que corrupção não é a primeira preocupação. Mas você tinha combate. Nunca se viu tanta gente de classe alta ser presa como no primeiro governo Lula, e no segundo também. A Polícia Federal nunca teve liberdade de ação de prender quem ela achasse que devesse. A tolerância do Judiciário com a classe mais alta é conhecida da população. Por isso, a denúncia não pegou. Com o [ex-presidente Fernando] Collor, tanto o Congresso quanto a população se rebelaram.
De que modo o impeachment do Collor, em 1992, incentivou os presidentes seguintes a formarem sempre governos supermajoritários?
O presidencialismo de coalizão é uma prática antiga do país. E as coalizões supermajoritárias já existiam na República de 1946. A média de cadeiras da base de apoio era maior do que hoje - e naquela época não havia reforma constitucional. Esta supermaioria dá ao governo flexibilidade. O governo ganha [a votação] e permite aos partidos que eles atendam às suas necessidades, como a do voto pessoal, de alguns parlamentares.
O PDT votou contra o governo em projetos que são muito caros à sua base eleitoral, parte dela ligada ao sindicalismo, como no salário mínimo e na Funpresp. Este seria um exemplo de que a turbulência na base aliada é mais complexa do que a demanda por cargos?
Lógico. E isso tudo é confundido com chantagem à presidente. Na verdade, o partido tem a política geral, que seus integrantes apoiam, e o deputado tem que ter uma certa liberdade. E isso é um aspecto que explica por que há uma coalizão tão grande no Brasil. Há uma diferença entre presidencialismo e parlamentarismo. No presidencialismo, como você sabe que a vitória numa votação não é tão importante em termos de possibilidade de um voto de não confiança, o presidente pode se arriscar um pouco mais. Se o presidente tem uma coalizão relativamente grande, ele pode permitir que certos deputados votem contra o governo, porque eles precisam manter o nome em suas bases eleitorais. O Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que é um cara com base nos aposentados, não pode votar contra aposentado. Agora, isso está relacionado, claro, a quanto o deputado depende ou não do partido para ser eleito. Um deputado que não tem muito voto pessoal não pode fazer isso. Vai ter que ir contra a base dele.
É o jeito de lidar com um sistema no qual os parlamentares devem seu mandato tanto ao voto pessoal quanto ao partido?
A grande característica no conjunto de instituições que se tem no Brasil, principalmente quanto ao sistema eleitoral, sempre defendo isso, é que você pode combinar as duas coisas. A rigor, qualquer coisa que se compare Brasil com Argentina, por exemplo, aqui se combina tudo, se concilia tudo, enquanto na Argentina, você vai pro pau. Em tudo. No Brasil, você mudou de monarquia para República e se mantiveram os membros do Judiciário. Na Argentina, dentro de um governo, há uma mudança radical.
É uma vantagem para o Brasil?
Eu acho que sim. A política está no meio. O centro é o grande fator de estabilidade. Por que você teve a queda [do regime democrático] em 1964? O centro se rompeu. Você teve uma radicalização que foi o principal fator que levou ao golpe. Se você mantém o centro, sem mudar a política, não é bom, óbvio. Mas mudando... Acho que o que as pessoas não veem no Brasil é isso: o quanto o Brasil mudou de 1989 ou de 1985 para cá, em todos os indicadores.
A política contribuiu?
Só pode ter contribuído. Pelo menos não foi obstáculo, como todo mundo dizia. As instituições políticas eram obstáculo para o combate à inflação; para o poder excessivo e a gastança dos Estados; para a distribuição de renda. Foi se derrubando, um a um, tudo. A educação melhorou, quer dizer, piorou porque houve uma inclusão total. O Brasil ficou de 1960 até 1980 praticamente com a mesma porcentagem de alunos em idade escolar no ensino médio. Quem começou a mudar foi o governo Fernando Henrique e, depois, se ampliou muito.
Seria difícil governar sem o PMDB?
Por que o PMDB é um partido fundamental para qualquer governo de coalizão? Exatamente por ele ser um partido de centro e aceitar governos tanto de direita quanto de esquerda. É assim no mundo todo.
Isso é funcional para o sistema?
É funcional e importante para a governabilidade. Todo governo entra querendo pegar o apoio do partido de centro. As pessoas não gostam de falar de ideologia no Brasil. E esse é um ponto que eu queria introduzir. Tem ideologia no sentido de que os partidos se distinguem pelas políticas que eles querem implementar, que eles falam para os seus eleitores. Porque o partido, por mais fisiológico que ele seja, na hora de se eleger ele não vai dizer o que um deputado disse: "Me eleja porque eu quero me locupletar". O cara pode fazer isso, mas o partido não pode. Precisa dizer algo que passe pelo eleitorado. Ele cria uma reputação em torno de algumas questões.
E qual é a do PMDB?
O PMDB é o partido que tem garantido de uma maneira geral uma situação melhor, por exemplo, de salário mínimo, política social. É o partido da redemocratização que quer melhorar a situação do povo brasileiro. Ele passa isso. E ele faz, se você analisar o que eles apoiam dentro do Orçamento. Eles apoiam distribuição de recursos automáticos. O que todos os economistas desde o governo Collor vêm dizendo é que não se pode engessar o Orçamento. E o Congresso engessa. A situação econômica engessa de um lado e o Congresso de outro, garantindo dinheiro para políticas sociais, e para melhora do salário mínimo também. E com isso - e este é o ponto mais importante - quando o Congresso decide que o salário mínimo vai ser aumentado, ele decide depois que o governo manda o Orçamento e, portanto, ele tem que fazer um ajuste nas despesas de custeio, de pessoal, de Previdência, tudo isso é garantido uma parte constitucionalmente e outra parte legalmente. Quando ele faz isso, de onde sai, ou seja, onde ele perde? Em investimento, nas emendas parlamentares, porque o governo historicamente sempre executou menos as emendas individuais. Então você não acha que ele vai fazer isso [dar aumento de salário, por exemplo] sabendo que vai perder dinheiro? Sabe que está perdendo. E o PMDB sempre participou da coalizão que apoiou isso.
Mas a retenção das emendas individuais pelo Executivo sempre aparece como um dos motivos principais da insatisfação da base no Congresso.
A base tem que falar muito mais, tem que expressar muito mais insatisfação para ter um pouco. Então, uma parte dessa insatisfação é versão. Uma coisa é fato, outra coisa é versão. Os analistas e cientistas políticos trabalham muito com versão. Eles [os parlamentares] gritam muito, e a gente não pode tomar essa gritaria pelo seu valor à primeira vista. Ela é maior. Isso já acontecia com Fernando Henrique.
Não há insatisfação?
O que eu acho que a Dilma está fazendo agora? Botando limite. Ela tem que tomar cuidado. Como você disse, se ela estabelecer uma espécie de presidencialismo de colisão, vai por água abaixo. E uma outra coisa é que não há presidente gestor. O presidente é político. Ele tem que delegar a gestão, dar as linhas gerais, delegar, cobrar etc, mas tem que ter uma atuação política.
Mas Dilma não está rebaixando muito o caráter político da Presidência?
Eu achava que com a saída dos dois líderes [do governo, na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT-SP), e no Senado,Romero Jucá (PMDB-RR)], daquele jeito, ela estaria [rebaixando], como se dissesse: "Vou botar para quebrar". Mas não está parecendo que ela vai botar para quebrar. O que ela mostrou foi: "Aqui não dá para o PMDB fazer chantagem deste jeito". Ela vai enfrentar daqui a pouco o Jucá na Comissão de Orçamento, mas vai enfrentar de outra maneira. Vai ter tempo dele abaixar um pouco a crista. Dizem que ela é centralizadora, que quer saber de tudo, mas de toda maneira parece que agora ela está botando um limite aí, no comportamento político. O [novo líder do governo no Senado] Eduardo Braga (PMDB-AM), em uma entrevista, foi muito político ao dizer que o PMDB é um partido importante mas que está na hora de inaugurar novas práticas para o país. Nesse ponto, ele tem uma certa razão. O país está num crescendo, consolidando práticas políticas, e agora está na hora, porque a presidente tem o apoio da sociedade para isso.
Por que Lula não fez isso?
O Lula abriu o caminho. A minha impressão é que ele combateu a corrupção por outro canal, entrou por uma coisa mais institucionalizada: Controladoria-Geral da União (CGU), Polícia Federal... A classe política brasileira apresentou um desafio ao Lula com o mensalão. Não se trata de falar se houve ou não houve. Óbvio que o partido não precisava comprar o presidente da Câmara que era do PT [João Paulo Cunha] para votar com o partido. Mas ele [Lula] viu o que teria que enfrentar. O que os partidos fizeram? Vamos abaixar a crista do PT. E isso tem a ver com ideologia, para quem você quer governar.
Mas essa é uma ideia inversa à difundida: a de que foi o PT que procurou os partidos e parlamentares para comprar apoio.
Ele fez isso, mas você acha que o PSDB não fez? Só que o PSDB não ameaçou os partidos. Não ameaçou nada. Eu sempre dou o exemplo do PMDB no Ministério dos Transportes, que foi um feudo controlado durante os oito anos do governo Fernando Henrique. E controlou a sub-relatoria da comissão de Transportes. O dinheiro de transportes, que era um terço dos investimentos do Brasil, foi controlado pelo PMDB de cima a baixo e a gente viu como as estradas acabaram no governo Fernando Henrique. Elas eram nada, continuam ruins, mas eram muito piores.
Além de cargos, o PMDB reivindica ao PT maior participação nas tomadas de decisão do governo. É natural que o partido presidencial ou do primeiro-ministro centralize o comando ou a queixa procede?
A proporcionalidade entre ministério e número de cadeiras é bastante seguida nos governos de coalizão parlamentaristas. No presidencialismo, não é. Por causa da eleição direta no presidente, ele tende a ter esse papel mais importante da agenda do governo. Isso não foi diferente no Fernando Henrique, só que era feito de uma maneira mais sutil. Todo mundo falava e tem até um artigo da [socióloga e professora da FGV e da USP] Maria Rita Loureiroque mostra que a forma de Fernando Henrique controlar os ministérios era botar secretário-executivo do PSDB.
É uma estratégia semelhante à utilizada pela Dilma hoje...
Pois é, não é uma anomalia. E era considerada uma coisa positiva porque dessa maneira o presidente conseguia uma unidade maior na política.
As emendas parlamentares deveriam ser impositivas?
Eu sou a favor de ser obrigatória. E eu sempre digo que é um canal interessante de informação para o governo. Como o parlamentar está em contato com suas bases, ele sabe o que é necessário. Não vai dar uma coisa inútil. É um modo eficiente de distribuir recursos pelo qual o governo detém informação. De outra maneira, você teria que fazer um estudo muito detalhado da situação no país inteiro, o que representaria um gasto enorme, e seria algo meio tecnocrático. Talvez pudesse ser feito pelo deputado estadual, e não o federal.