Delze dos Santos Laureano[1]
(Publicado em http://www.delzesantoslaureano.blogspot.com )
“Quem traz no corpo a marca Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”
Milton Nascimento e Fernando Brant
Penso que a primeira ideia que nos vem à mente quando pensamos na mulher hoje é a da mulher urbana, trabalhadora, realizada e feliz porque se viu livre do domínio que a condenava à inferioridade mantida por tantos séculos. Até mesmo a obrigação de gerar filhos tornou-se uma opção. Todavia, não podemos ser ingênuas acreditando existir um tipo ideal de mulher, como se ele representasse de fato todas as mulheres de hoje, de todas as idades e com os diversos problemas que enfrentam, seja nas relações afetivas, na família, no trabalho ou no meio social e político em que vivem.
Mesmo considerando que são algumas dessas mulheres urbanas - essas que se fizeram autônomas por terem renda própria e por se desvencilharem dos tabus e dos preconceitos morais - as que melhor representam a emancipação feminina, não podem esquecer as que ainda vivem sob o jugo dos pais, dos companheiros[2], dos patrões e do mercado, nesta nossa sociedade patriarcal e machista que fez tudo virar mercadoria por meio da exploração capitalista desmedida.
Penso nas mulheres que mesmo tendo conquistado a emancipação frente ao machismo estão sobrecarregadas com o ônus da própria emancipação. Hoje somos trabalhadoras com dupla, ou até de trilha jornada. Somos as vítimas das doenças antes típicas dos homens, somos as que carregam o peso do provimento exclusivo da prole pelo simples fato de podermos romper com as relações afetivas sem afeto.
Olhando para o passado, vemos que foi a partir de 1960 que o movimento de libertação das mulheres desencadeou-se como parte integrante de um movimento cultural da juventude. No final do século XX, um número expressivo de mulheres entrou no mercado de trabalho, chegando mesmo a ser, em determinados setores, como nas universidades, em número maior do que os homens. A economia capitalista, baseada no estímulo e na criação incessante de novas e artificiais necessidades, foi a que mais contribuiu para o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, de modo a que viessem a ser uma fonte suplementar de rendimentos, necessária para a realização dos sonhos da sociedade de consumo. Nos nossos dias os quadros femininos passaram a atingir o topo da carreira em algumas empresas.
A história mostra, todavia, que as mulheres sempre trabalharam, apesar de por muito tempo não ter sido reconhecido o valor econômico do trabalho feminino. Nas sociedades primitivas, por exemplo, as mulheres executavam as tarefas agrícolas e domésticas. No neolítico as mulheres criaram a agricultura e, por isso, começaram a esmerar-se na arte da hospitalidade, do cuidado da casa e do quintal, enquanto os homens incumbiam-se da caça e da pesca, iniciando o processo cultural de ser o homem forte, dominador e predador e a mulher a que tem de cuidar do lar e da prole.
A partir da Revolução Industrial e nas situações extremas, como no período das duas grandes guerras foi que as mulheres passaram a trabalhar massiçamente nas fábricas tendo de deixar por longo período as suas casas. É de se notar que em todos esses momentos elas não deixaram de assumir as tarefas domésticas. Para justificar a dupla jornada, essa “realidade” foi mascarada por uma cultura que valoriza a liberdade e o bem-estar individual. O trabalho doméstico passou a ser visto como uma forma de submissão ao homem. A ideologia dominante forjou o reconhecimento social do trabalho feminino atrelado a ideias como o direito a uma “vida autônoma” e à independência econômica.
Os próprios homens tiveram de reconhecer a legitimidade do trabalho assalariado feminino como instrumento de autonomia e realização pessoal, a despeito de muitas vezes ser cristalino para todos que nem mesmo sob o aspecto econômico é vantajosa a venda de toda a força de trabalho da família no mercado. Quando ambos os cônjuges estão fora do lar, e por muitas horas nas empresas, há irremediavelmente uma perda na qualidade de vida de todos. Pais e filhos ficam expostos à vulnerabilidade de uma sociedade que não tem mais tempo para conviver, para cultivar a espiritualidade, para a participação na vida em sociedade ou até mesmo para usufruir dos bens adquiridos pelo trabalho. A inserção acrítica da mulher no mercado reafirma na prática a voz que inconscientemente profere: “Patrões, explorem-nos como vocês exploram os nossos maridos.”
Os problemas tornam-se mais visíveis entre as famílias pobres que não dispõem de creches, de escolas que cuidem efetivamente do desenvolvimento integral das crianças e acabam pagando um alto preço por isso. Deparamo-nos cotidianamente com notícias dos jovens pobres a serviço do narcotráfico, das adolescentes grávidas sem a mínima condição para ampararem suas famílias, desamparadas elas mesmas desde tenra idade. Perpetua-se deste modo o círculo vicioso da pobreza, da exclusão e da violência em todas as suas formas.
Percebemos neste início de século que ainda estão distantes as conquistas que possam significar emancipação feminina efetiva. O discurso hegemônico faz acreditar que todas podemos viver bem, desde que lutemos individualmente para isso. É o mito do sucesso pessoal que nos leva para os cantos da irracionalidade da vida. Cada uma das mulheres busca a conquista do lugar social para si e para a família seguindo o receituário do mercado.
Vemos que na busca de um sonho inatingível empenhamos nossas forças sem ter muita consciência de que, na prática, estamos é contribuindo para a manutenção de um sistema opressor, que absolutiza o lucro e afasta ou pisoteia pessoas. Esse mesmo sistema que deixa o rastro das mazelas sociais e ambientais que nos assustam na atualidade: as catástrofes climáticas, a destruição da cultura e dos bens comunitários, esses sim que sustentam os laços de fraternidade e os traços de cultura local.
Nós, as mulheres, submissas a esse sistema que tudo coisifica, deixamos também os nossos rastros de poluição, com os nossos carros, com o consumo excessivo de mercadorias que “embelezam” exigindo e roubando o nosso tempo com limpeza e cuidados desnecessários, fazendo desaparecer grande parte do nosso orçamento mediante o uso crescente e excessivo de energia, de água, de todo tipo de objetos e trabalho humano.
Sem perceber, exploramos trabalhadoras/es e biodiversidade quando excedemos no uso de cosméticos, de produtos de higiene pessoal, de artigos de luxo, ou com tanta parafernália para manter a aparência. Ou simplesmente para ficar em dia com as inovações tecnológicas que nos afastam dos serviços que poderiam até minimizar o estresse diário, como o preparo dos alimentos ou costurar e bordar uma roupa. As necessidades humanas são manipuladas pelos meios de comunicação de massa. Nós, presas a esse modo de vida ocidental, construído sob a lógica de um poder dominado por homens e legitimado por mulheres “modelos”, tornamo-nos subservientes ao mercado. Somos, nós mesmas usadas para a compra e venda de todo tipo de mercadoria: carros, apartamentos, cigarros, remédios, cavalos, votos... Vemo-nos reduzidas a essa engrenagem que exclui comunidades inteiras como as do Xingu que lutaram obstinadamente contra um mega projeto assassino de tantas vidas. Essas sim que ainda teriam muito a conquistar em seus próprios territórios.
Por isso tento como Vinícius de Moraes pensar nas meninas cegas inexatas, nas mulheres rotas alteradas, nas meninas grávidas antes do tempo, nas mulheres marginalizadas, nas mulheres operárias da tripla jornada, nas mulheres condenadas aos menores salários em moradias desumanas no campo e na cidade. Quero pensar também em nós mesmas, mulheres que conquistamos um lugar no mercado, desperdiçando o melhor da vida: a oportunidade de conviver, de sentir cada momento vivido com as pessoas que amamos.
Precisamos estar todas juntas para não vivermos com essa visão pessimista do mundo, considerando que “quem só vê o lado negativo das coisas acaba encontrando”. A vida nos mostra todos os dias exemplos de mulher que constrói na luta os caminhos contra a opressão. Vemos por todos os lados mulheres que fazem a diferença como pessoas humanas.
Parafraseando o poeta mineiro, Drumond, digo que olho essas minhas companheiras e vejo que apesar de taciturnas, nutrem grandes esperanças. Entre elas considero uma enorme diversidade. Nessa diversidade sinto ser possível brotar uma sociedade em que vivam mulheres, homens, crianças, pessoas de todos os gêneros, de todo tipo e lugar, de todas as idades, fazendo outro mundo possível. No cuidado da vida na e da perspectiva feminina, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas!
Belo Horizonte, 08 de junho de 2011
[1] Delze dos Santos Laureano é advogada e professora universitária, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda em Direito Internacional em Direitos Humanos pela PUC-MINAS, Integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; e-mail: delzesantos@hotmail.com – Blog www.delzesantoslaureano.blogspot.com
[2] A Lei Maria da Penha está aí para confirmar isso.