Julieta Amaral da Costa[1]
Vou começar falando de Natal na Quaresma. Li, no final do ano passado, um pregão natalino que dizia: “O natal este ano será no Haiti”. Fiquei impressionada porque, justamente, acabava de decidir voltar ao Haiti para colaborar na continuidade do Projeto de solidariedade da Arquidiocese de Belo Horizonte. O final do pregão dizia: “então, este ano, não vamos a Belém, vamos ao Haiti e lá encontraremos Maria, José e o Menino”. Mais impressionada fiquei com a insistência de uma de minhas amigas, Elza, de 84 anos, que me dizia: “então, você vai encontrar lá Maria, José e o Menino!”
Tomei o avião no dia 15 de março, rumo ao Haiti.
A casa que nos acolhe, na capital, está cercada de barracas de lona por todos os lados. Essa é a realidade de todas as praças, ruas e quintais.
No dia seguinte, a primeira vez que saí de casa, me deparo com uma mulher saindo de um dos barracos exclamando: “você voltou”? Fiquei admirada, me aproximei e perguntei arriscando falar o Kreyol, língua própria daqui: você se lembra de mim? Ela suspendeu um pouco a saia, mostrou-me uma cicatriz na coxa dizendo: “você comprou a pomada que curou minha ferida”. Aí me lembrei o nome dela e exclamei: Elisabeth?? Abraçamo-nos muito felizes. Ela apontou para dentro do barraco, entrou e veio trazendo nos braços uma menininha muito bonita. Tinha um mês de idade. Tomei-a nos braços e perguntei o nome. “Marie”, respondeu. “Tenho mais três”, acrescentou, falando a idade de todos eles.
Na mesma hora saltou da minha memória o pregão natalino. Mas como assim? Encontrei, sim, a mãe, e a menina... não foi um menino. A mãe é Izabel (Elisabeth), nome da prima... que também experimentou um abraço revelador... Quem quiser que ponha na ordem bíblica os fatos e as personagens, por enquanto, todas femininas.
Faltava, no entanto José. Fiquei meio sem jeito de perguntar pelo pai, levada por tantos prejulgamentos que fazemos sempre: deve ser um de cada pai...
Saí dali intrigada e fui comprar algumas coisas de que precisava. Na volta, lá estava ela. Sentei-me, então na “porta” do barraco e conversamos. No meio da conversa perguntei despistadamente: você tem marido? Estava na hora de completar o quadro meio disforme.
Com olhos brilhantes, quase em lágrimas, me disse: “ele tinha morrido na véspera do dia que a senhora passou aqui! Era pedreiro, perdeu uma perna no terremoto e, 4 meses depois, não resistiu... eu estava grávida”...Aí os olhos que brilharam foram os meus.
Compreendi que ali estava uma Maria sem José, vítima da fatalidade de 12 de janeiro. E que, naquele barraco, se misturavam muitos mistérios: natal, paixão, morte e ressurreição. Por isso essa reflexão também pode ser de Páscoa. Misturei com ela os versos de João Cabral de Melo Neto, no auto de Natal pernambucano: Morte e Vida Severina. Ele apresenta os pobres trazendo presentes ao menino que acabava de “saltar pra dentro da vida”. Frutas, coisas pequenas da região.
Entrei e fui buscar algo que poderia trazer de presente à pequena Marie. Acabei encontrando partes de uma fralda que minha irmã mais velha tinha cortado em quatro, para eu enxugar o rosto no tempo de muito calor. Peguei três pedaços, dobrei bem, sem papel de presente, e levei.
Momentos plenos de sentido e de simplicidade. Sem necessidade de teorizar: Natal? Paixão? Páscoa? Menino ou menina? E a mistura bíblica? Personagens fora de tempo e de lugar?
De qualquer forma a gente acaba consultando “os botões” da teologia. E vai se convencendo de que hoje não é o caso de procurar o menino-homem, Jesus histórico. É o caso de encontrar a humanidade: homem-mulher, assumida na encarnação. De perceber que o mistério da ressurreição já penetrou o nascimento a paixão e a morte que continuam acontecendo hoje. E que a vitória é da VIDA. Tive, então, vontade de cantar com o Gonzaguinha que a “vida é bonita, é bonita e é bonita”. Vou continuar matutando: “Vida Severina, mas de qualquer forma, VIDA”!!! E você? Quer continuar?
Haiti - Páscoa 2011
Vou começar falando de Natal na Quaresma. Li, no final do ano passado, um pregão natalino que dizia: “O natal este ano será no Haiti”. Fiquei impressionada porque, justamente, acabava de decidir voltar ao Haiti para colaborar na continuidade do Projeto de solidariedade da Arquidiocese de Belo Horizonte. O final do pregão dizia: “então, este ano, não vamos a Belém, vamos ao Haiti e lá encontraremos Maria, José e o Menino”. Mais impressionada fiquei com a insistência de uma de minhas amigas, Elza, de 84 anos, que me dizia: “então, você vai encontrar lá Maria, José e o Menino!”
Tomei o avião no dia 15 de março, rumo ao Haiti.
A casa que nos acolhe, na capital, está cercada de barracas de lona por todos os lados. Essa é a realidade de todas as praças, ruas e quintais.
No dia seguinte, a primeira vez que saí de casa, me deparo com uma mulher saindo de um dos barracos exclamando: “você voltou”? Fiquei admirada, me aproximei e perguntei arriscando falar o Kreyol, língua própria daqui: você se lembra de mim? Ela suspendeu um pouco a saia, mostrou-me uma cicatriz na coxa dizendo: “você comprou a pomada que curou minha ferida”. Aí me lembrei o nome dela e exclamei: Elisabeth?? Abraçamo-nos muito felizes. Ela apontou para dentro do barraco, entrou e veio trazendo nos braços uma menininha muito bonita. Tinha um mês de idade. Tomei-a nos braços e perguntei o nome. “Marie”, respondeu. “Tenho mais três”, acrescentou, falando a idade de todos eles.
Na mesma hora saltou da minha memória o pregão natalino. Mas como assim? Encontrei, sim, a mãe, e a menina... não foi um menino. A mãe é Izabel (Elisabeth), nome da prima... que também experimentou um abraço revelador... Quem quiser que ponha na ordem bíblica os fatos e as personagens, por enquanto, todas femininas.
Faltava, no entanto José. Fiquei meio sem jeito de perguntar pelo pai, levada por tantos prejulgamentos que fazemos sempre: deve ser um de cada pai...
Saí dali intrigada e fui comprar algumas coisas de que precisava. Na volta, lá estava ela. Sentei-me, então na “porta” do barraco e conversamos. No meio da conversa perguntei despistadamente: você tem marido? Estava na hora de completar o quadro meio disforme.
Com olhos brilhantes, quase em lágrimas, me disse: “ele tinha morrido na véspera do dia que a senhora passou aqui! Era pedreiro, perdeu uma perna no terremoto e, 4 meses depois, não resistiu... eu estava grávida”...Aí os olhos que brilharam foram os meus.
Compreendi que ali estava uma Maria sem José, vítima da fatalidade de 12 de janeiro. E que, naquele barraco, se misturavam muitos mistérios: natal, paixão, morte e ressurreição. Por isso essa reflexão também pode ser de Páscoa. Misturei com ela os versos de João Cabral de Melo Neto, no auto de Natal pernambucano: Morte e Vida Severina. Ele apresenta os pobres trazendo presentes ao menino que acabava de “saltar pra dentro da vida”. Frutas, coisas pequenas da região.
Entrei e fui buscar algo que poderia trazer de presente à pequena Marie. Acabei encontrando partes de uma fralda que minha irmã mais velha tinha cortado em quatro, para eu enxugar o rosto no tempo de muito calor. Peguei três pedaços, dobrei bem, sem papel de presente, e levei.
Momentos plenos de sentido e de simplicidade. Sem necessidade de teorizar: Natal? Paixão? Páscoa? Menino ou menina? E a mistura bíblica? Personagens fora de tempo e de lugar?
De qualquer forma a gente acaba consultando “os botões” da teologia. E vai se convencendo de que hoje não é o caso de procurar o menino-homem, Jesus histórico. É o caso de encontrar a humanidade: homem-mulher, assumida na encarnação. De perceber que o mistério da ressurreição já penetrou o nascimento a paixão e a morte que continuam acontecendo hoje. E que a vitória é da VIDA. Tive, então, vontade de cantar com o Gonzaguinha que a “vida é bonita, é bonita e é bonita”. Vou continuar matutando: “Vida Severina, mas de qualquer forma, VIDA”!!! E você? Quer continuar?
Haiti - Páscoa 2011
[1] Irmã da congregação das Irmãs Providência de Gap; e-mail: julietac30@hotmail.com . Julieta está sendo missionário no Haiti, em 2011. Pertence também ao CEBI – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos.