Em primeiro lugar: Às vezes sinto que, por causa de ocupações ou pensamentos alheios, fiquei frio ou perdi a vontade de orar. Pois a carne e o diabo estão constantemente dificultando e impedindo a oração. Nesses momentos pego meu pequeno saltério, vou para o meu quarto ou, conforme o dia e a hora, para a igreja, em meio às pessoas. E passo a falar para mim mesmo, oralmente, os dez mandamentos, o credo e, dependendo da minha disponibilidade de tempo, diversas citações de Cristo, de Paulo ou dos Salmos, tudo coisas como as fazem as crianças.
É bom que, de manhã cedo, se faça da oração a  primeira atividade, e de noite, a última. E cuide-se muito bem desses  pensamentos falsos e enganosos que dizem: Espera um pouco, daqui a uma  hora vou orar, antes ainda tenho que resolver isto ou aquilo. Porque com  esses pensamentos a gente passa da oração para os afazeres que prendem e  envolvem a gente a ponto de não mais sair oração o dia inteiro.
Está certo que podem aparecer tarefas diversas  tão boas ou até melhores que a oração, principalmente se a necessidade  as exige. Corre um dito atribuído a São Jerônimo1: "Todo trabalho do  crente é uma oração". E há um provérbio que diz: "Quem bem trabalha, ora  em dobro", o que significa que uma pessoa crente teme e honra a Deus em  seu trabalho, e se lembra do seu mandamento, para que não faça  injustiça a ninguém, nem roube, engane ou defraude a ninguém. Essa  atitude, sem dúvida, faz da sua ação, adicionalmente, uma oração e um  sacrifício de louvor.
Por outro lado, também não é menos verdade que a  obra de um descrente é pura maldição, e quem trabalha desonestamente  impreca em dobro. Pois os pensamentos de seu coração durante o trabalho  só podem ser tais que ele despreze a Deus, infrinja os mandamentos e  faça injustiça a seu próximo, e procure roubar e defraudá-lo. Esses  pensamentos, seriam eles outra coisa senão pura maldição contra Deus e  as pessoas, pelo que sua obra e trabalho também passa a ser dupla  maldição? Com isso se amaldiçoa também a si mesmo. Daí se originam  mendigos e ineptos. Quanto a essa oração constante, entretanto, Cristo  diz em Lucas 11.9s: Deve-se orar sem cessar, porque é preciso que a  gente se acautele permanentemente contra pecado e injustiça, o que não  pode suceder onde não se teme a Deus e tem ante os olhos o seu  mandamento, conforme diz o Salmo 1: "Bem-aventurado aquele que medita de  dia e de noite na lei do Senhor" (v. 2), etc.
Mas também precisamos nos cuidar para que não nos  desabituemos da oração certa, e, em última análise, julguemos  necessárias obras, que na verdade não o são, destarte ficando enfim  relaxados e preguiçosos, frios e enfastiados em relação à oração. Haja  vista que o diabo, ao nos assediar, não é preguiçoso nem negligente, e a  nossa carne ainda está por demais viva e disposta para o pecado,  inclinando-se contra o espírito de oração.
Depois de aquecido o coração por tal  pronunciamento oral, encontrando-se assim a si mesmo, ajoelhe-se ou  fique parado, com as mãos postas em oração e os olhos voltados para o  céu, e fale ou pense tão brevemente quanto pode:
O Pai celeste, Deus querido, sou um pecador pobre  e indigno, que não mereço levantar meus olhos ou minhas mãos para ti e  orar. Mas como nos mandaste a todos orar, e ainda prometeste  atender-nos, e nos ensinaste inclusive as palavras que devemos usar e a  maneira como fazê-lo através do teu Filho amado, nosso Senhor Jesus  Cristo, venho obedecer a esse mandamento. E me fio em tua promessa  graciosa, e, em nome de Jesus Cristo, oro com todos os teus santos  cristãos na terra, como ele me ensinou:
1. "Pai nosso,  que estás santificado seja o teu Nome",
Em seguida repita uma parte ou  quanto quiser, como a primeira petição, a saber: "santificado seja teu  nome", e diga: Vem, Deus Senhor, Pai querido, santificar o teu nome  tanto em nós mesmos como em todo o mundo! Destrói e elimina os horrores,  a idolatria e heresia do turco, do papa e de todos os falsos  doutrinadores ou espíritos sectários,1 que usam teu nome de forma  enganosa e assim dele abusam de maneira descarada e blasfemam  terrivelmente. E afirmam tratar-se de tua palavra e do preceito da  igreja. Mas não passa de mentira e dolo do diabo, com o que em teu nome  transviam em todo o mundo tantas pobres almas rumo à miséria; e além  disso ainda perseguem, matam e derramam sangue inocente, achando que  assim estão prestando culto a ti.
Senhor Deus querido, converte e põe um fim. Converte  aqueles que ainda precisam ser convertidos, para que venham conosco e  nós com eles a honrar, santificar e glorificar o teu santo nome, com  doutrina pura e genuína e com uma vida benigna e santificada. Não  consintas, porém, que aqueles que não se querem converter, continuem a  abusar, profanar e desonrar o teu santo nome e a transviar as pobres  pessoas, amém.
2. "Venha a nós o teu Reino"
Diga:  Ah, querido Senhor Deus e Pai, estás vendo que não é somente a  sabedoria e entendimento do mundo que difamam teu nome e entregam a tua  glória à mentira e ao diabo. Todo o seu poder e mando, sua riqueza e  glória que lhes deste sobre a terra para governar no âmbito secular e  com isto te servir, estão se opondo e resistindo a teu reino.
Eles são grandes, poderosos e em grande número,  gordos, obesos e fartos, e atormentam, impedem e perturbam o pequeno  punhado do teu reino, homens fracos, desprezados e insignificantes. Não  os querem tolerar sobre a terra, e ainda acham que assim estão te  prestando um grande culto. Querido Senhor, Deus e Pai, aqui converte e  susta. Converte aqueles que ainda precisam tornar-se filhos e membros do  teu reino, para que eles conosco e nós junto com eles te sirvamos em  teu reino em fé genuína e amor autêntico e passemos deste reino iniciado  para o reino eterno. E impede aqueles que não querem deixar de usar seu  poder e capacidade para perturbar o teu reino, de sorte que, derrubados  do seu trono e humilhados, tenham que parar com isso, amém.
3.  "Seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu"
Diga:  Ah, querido Senhor Deus e Pai, tu sabes como o mundo, não podendo  eliminar por inteiro o teu nome e acabar com teu reino por completo,  lida dia e noite com ardis e peças malvadas, tramam toda sorte de  estranhos atentados, ficam maquinando e conspirando, apóiam-se e se  fortalecem mutuamente, ameaçam e se enfurecem, atentam com as piores  intenções contra o teu nome, tua palavra, teu reino e teus filhos,  procurando matá-los.
Por isso, querido Senhor Deus e Pai, leva à conversão  e acaba com isso. Converte aqueles que ainda devem reconhecer tua boa  vontade, para que junto conosco e nós com eles obedeçamos a ela e desta  forma suportemos com paciência e alegria todo mal, cruz e vicissitude, e  nisto reconheçamos, provemos e experimentemos tua vontade benigna,  misericordiosa e perfeita. Acaba, porém, com aqueles que não querem  renunciar à sua fúria, raiva, ódio, ameaça e má intenção de prejudicar.  Aniquila e desmascara seus desígnios, atentados e tramóias malvadas. Que  se voltem sobre eles mesmos, como canta o Salmo 7.16, amém.
4.  "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje"
Diga: Ah, querido  Senhor Deus e Pai, concede tua bênção também para esta vida temporal e  física. Dá-nos misericordiosamente a paz preciosa. Protege-nos de guerra  e tumulto. Concede ao nosso caro senhor imperador boa sorte e sucesso  contra seus inimigos; dá-lhe sabedoria e entendimento, que governe seu  reino terreno com tranqüilidade e felicidade. Dá a todos os reis,  príncipes e senhores o bom conselho e intento de manterem seus países e  sua gente em pleno gozo de paz e justiça.
Principalmente ajuda e orienta nosso querido senhor  territorial N., sob cuja proteção e tutela tu nos guardas: Que ele nos  proteja de todo mal, e governe de forma bem-aventurada e a salvo de más  línguas e gente desleal. Concede a todos os súditos a graça de servirem  fielmente e de serem obedientes. Dá que todas as classes, todos os  cidadãos e camponeses permaneçam devotos e manifestem amor e lealdade  entre si. Concede bom tempo e frutos da terra; encomendo-te também casa e  quinta, mulher e filhos.
Ajuda que eu os dirija bem e os crie e eduque de  forma cristã. Rechaça e domina o perversor e a todos os anjos malignos  que nisso causam dano e estorvo, amém.
5. "Perdoa-nos as  nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores"
Diga:  Ah, querido Senhor Deus e Pai, não nos leves ao juízo, porque perante  ti nenhuma pessoa viva é justa (Salmo 143.2). Ah, não nos imputes como  pecado o fato de sermos infelizmente tão ingratos por toda a tua  indizível bênção, espiritual e corporal, e de tropeçarmos e pecarmos  muitas vezes todos os dias, mais do que sabemos ou podemos perceber  (Salmo 19.12). Não leves em consideração quão piedosos ou maus somos,  mas sim a tua misericórdia insondável, a nós concedida em Cristo, teu  Filho amado.
Perdoa também a todos os nossos inimigos, a todos  que nos fazem sofrer ou nos fazem injustiça, assim como também nós lhes  perdoamos de coração. Pois eles fazem o maior mal a si mesmos ao  provocarem a tua ira através de seu comportamento em relação a nós; e a  nós de nada adianta a sua perdição, mas sim em muito preferiríamos que  tivessem a bem-aventurança conosco, amém. (E quem neste ponto sente que  não pode perdoar facilmente, queira pedir a graça de poder perdoar. Mas  isto faz parte da pregação.)
6. "E não nos deixes cair em  tentação"
Diga: Ah, querido Senhor, Deus e Pai,  conserva-nos resolutos e bem dispostos, ardorosos e aplicados em tua  palavra e serviço. Que não nos sintamos seguros, preguiçosos e  relaxados, como se agora tivéssemos tudo, e o diabo ferino nos assalte e  tome de surpresa, e nos tire de novo a tua palavra preciosa ou provoque  discórdia e sectarismo entre nós, ou ainda nos atraia ao pecado e à  vergonha, seja espiritual ou corporal; mas dá-nos, por teu Espírito,  sabedoria e força, para que lhe resistamos com bravura e obtenhamos a  vitória, amém.
7. "Mas livra-nos do mal"
Diga:  Ah, querido Senhor, Deus e Pai, esta vida miserável é tão cheia de  aflição e infelicidade, tão cheia de perigo e insegurança, tão repleta  de deslealdade e maldade (como diz São Paulo: "Os dias são maus" -  Efésios 5.16), que bem deveríamos estar cansados da vida e desejosos da  morte. Tu, porém, Pai amado, conheces nossa fraqueza.
Por isso, ajuda-nos a atravessar seguros esses  múltiplos males e maldades. E quando chegar a hora, dá-nos um fim  misericordioso e uma despedida venturosa deste vale de aflição. Que não  nos amedrontemos diante da morte, nem desanimemos, mas, com fé resoluta,  entreguemos nossas almas em tuas mãos, amém.
Por fim, observe que de cada vez você tem que  fazer o amém bem forte, sem duvidar de que Deus o está ouvindo com  certeza, com toda a graça, e diz sim à sua oração. E lembre-se de que  não está sozinho ajoelhado ou parado. Toda a cristandade ou todos os  cristãos devotos estão com você, e você entre eles, em oração unânime e  concorde, a qual Deus não pode desprezar. E não largue da oração, a não  ser que tenha dito ou pensado: Bem, esta oração foi ouvida por Deus,  disso tenho certeza e o sei de verdade. Isso é o que significa "Amém".
Igualmente você deve saber que não quero que todas  estas palavras sejam ditas na oração. Isso acabaria dando num palavrório  e pura conversa vazia, recitado do livro ou da letra como o foram o  rosário entre os leigos e as orações dos padres e monges. Muito pelo  contrário, quero com isso ter estimulado e ensinado o coração, acerca  dos pensamentos que se deve ter durante o Pai nosso.
E a esses o coração (quando estiver bem aquecido e  disposto a orar) pode expressar muito bem com muitas outras palavras,  também com menos ou mais palavras. Pois eu mesmo também não me prendo a  essas palavras e sílabas, mas as falo hoje de um jeito, amanhã de outro,  conforme estou propenso e disposto. Mesmo assim, sempre me atenho, o  quanto posso, a este mesmo pensamento e sentido. Muitas vezes acontece  que, em alguma parte ou petição do Pai nosso, eu venho a me delongar em  pensamentos tão ricos, que deixo esperar todas as outras seis. E quando  vêm tais pensamentos ricos e bons, deve-se deixar de lado as outras  preces e dar lugar a esses pensamentos e ouvi-los em silêncio, não os  impedindo de modo algum; pois ali está pregando o próprio Espírito  Santo. E uma palavra de sua pregação é melhor do que mil orações nossas.  Assim também, freqüentemente, aprendi mais em uma só oração do que  poderia ter conseguido com muita leitura e reflexão.
Por essa razão é de suma importância que o coração  fique livre e disposto para a oração. Como também o diz Eclesiastes:  "Prepara teu coração antes da oração, para que não ponhas Deus à prova"  (Eclesiastes 5.1s e Eclesiástico 18.23). Que outra coisa é, senão tentar  a Deus, se a boca fica tagarelando e o coração está distraído em outros  lugares? - como aquele padre que reza assim: Deus, in adiutorium meum  intende - peão, já atrelaste o cavalo? - Domine, ad adiuvandum me  festina - criada, vai tirar leite das vacas; Gloria Patri et Filio et  Spiritui Sancto. - anda, guri, que a peste te pega, etc. -; (as três  passagens latinas citadas significam: "Deus, vem em meu socorro",  "Senhor, apressa-te em me ajudar" e "Glória ao Pai, ao Filho e ao  Espírito Santo". Lutero aqui ilustra como a reza das horas canônicas  sofre interferência dos afazeres diários).
Dessas orações ouvi e  experimentei muitas em meu tempo no papado. E quase todas as suas  orações são deste tipo, com que apenas se zomba de Deus. Seria melhor  que ficassem brincando, ao invés, já que não podem ou não querem fazer  nada de melhor. Eu mesmo orei muitas dessas horas canônicas em meus  dias, infelizmente, de sorte que o salmo ou a hora se tinha passado sem  que eu me desse conta se estava no começo ou no meio.
Nem todos se deixem levar, no que dizem, como o padre  acima mencionado, misturando os afazeres com a oração. Não obstante  procedem assim no coração com os pensamentos, perdem-se em mil  fantasias, e ao chegarem no fim, não sabem o que fizeram ou por que  partes passaram; começam dizendo "Laudate", e já estão no país das mil  maravilhas. Acho que ninguém acharia ludíbrio mais ridículo, se alguém  pudesse ver os pensamentos que um coração frio e sem devoção vai  misturando durante a oração. Mas, agora, louvado seja Deus, estou vendo  que não é uma boa oração se alguém se esquece do que falou. Porque uma  oração bem feita considera cuidadosamente todas as palavras e  pensamentos do início até o fim da oração.
Assim, um barbeiro aplicado e competente tem que  voltar seu pensamento, sua atenção e seus olhos, com muita precisão,  para a navalha e os cabelos, e não se descuidar, não sabendo que esteja  afiando ou cortando. Mas, se ele, ao mesmo tempo, quisesse fazer muita  conversa ou ficar pensando ou olhando outras coisas, certamente iria  cortar fora a boca ou o nariz, e até o pescoço. Desta forma, cada coisa  que é para ser bem feita, quer ter a pessoa inteira, com todos os seus  sentidos e membros, como se diz: "pluribus intentus minor est ad singula  sensus" - Quem pensa em muita coisa, não pensa em nada, também não faz  nada direito.
Tanto mais a oração precisa ter o coração uno, por inteiro e exclusivo, se é que deva ser uma boa oração. Com isso está brevemente descrita a forma como eu mesmo costumo orar o pai-nosso ou qualquer oração. Pois ainda hoje me alimento do pai-nosso como um bebê, dele bebo e como feito um velho; não consigo me fartar dele, sendo para mim a melhor de todas as orações, mais ainda que os salmos (que realmente aprecio muito). Na verdade, vemos que foi o bom Mestre que a criou e ensinou, e é profundamente lamentável que tal oração, de tão excelente Mestre, seja recitada sem qualquer devoção e assim desvirtuada em todo o mundo. Muitos há que rezam talvez mil pai-nossos por ano, e mesmo que rezassem durante mil anos, não teriam provado nem orado sequer uma única letra ou pontinho. Enfim, o pai-nosso é o maior dos mártires sobre a terra, (como nome e como palavra de Deus). Pois todo mundo o maltrata e abusa dele, sendo poucos os que o consolam e alegram com uso conveniente.
Do Escrito Como se deve orar, para o Mestre Barveiro ("Wie man beten sol, fúr Meister Peter Balbirer") 1535; WA 38, 358-375.
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No presente escrito Lutero ensina os cristãos a compreenderem toda a sua existência como vivida diante de Deus. O escrito simples e sincero é um testemunho magnífico de uma grande confiança no amor de Deus para com o mundo dos pecadores. Lutero dedicou-o a Pedro Beskendorf, um amigo de muitos anos, que foi chamado, segundo a profissão que exercia, de Pedro Barbeiro.
O escrito foi publicado no início do ano de 1535. Algum tempo depois, Pedro, provavelmente embriagado, matou seu genro. Foi um acidente, como tudo indica; mas não deixou de ser uma morte violenta. Apesar disso, Lutero, em edições posteriores, não tirou o nome do criminoso da dedicatória do escrito. Pois sempre afirmara que Deus aceita justamente os pecadores; justamente numa situação de pecado urge apelar à misericórdia de Deus. Os contemporâneos de Lutero apreciaram muito este pequeno escrito sobre a oração. Nos 11 anos entre 1535 e a morte de Lutero (1546), o escrito foi publicado em 11 edições, além da edição no dialeto do "baixo alemão" e em latim (Joaquim Fischer)