A entrevista é de Cristiano Romero e Paulo de Tarso Lyra e publicada pelo jornal Valor, 22-02-2011.
Qual foi o papel que a presidente Dilma designou ao senhor?
Ela teve uma conversa muito simples comigo. Disse: 'Gilbertinho, preciso de você porque eu quero que alguém me traga a realidade dos movimentos sociais, as demandas, as carências, as crises, alguém que me sensibilize para esse sofrimento do povo, alguém que diga a verdade. Não quero ser enganada nunca'.
Na prática, o que significa isso?
Significa que cabe a mim fazer a ponte. Todo ministério tem diálogo com os movimentos sociais. Minha área não tem o monopólio desses contatos, mas é o lugar, digamos, onde se organiza esse diálogo. Começou com o salário mínimo, em que fiz reuniões com as centrais sindicais.
Central sindical se enquadra no conceito de movimento social?
Sim, as centrais são a ponta de lança, até pela nossa tradição de relação. Estão incluídos também os chamados movimentos populares, como o MST, os movimentos indígena, dos negros, de gays e lésbicas, enfim, todas as formas de organização da sociedade, além das ONGs e das igrejas.
Como vai se estabelecer essa ponte?
Vamos acompanhar todas as conferências. Ao longo de oito anos, o governo Lula fez 73 conferências temáticas. Queremos democratizar ainda mais essas conferências. O governo tem se apropriado bem das propostas. Algumas, como aquela dos direitos humanos, são polêmicas. O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), por exemplo, foi fruto de uma conferência.
Como evitar que o governo vete, no fim, um documento aprovado numa conferência, como ocorreu no caso da criação da Comissão da Verdade?
O problema do PNDH é que a conclusão da conferência foi transformada em decreto do presidente Lula. O governo absorveu na totalidade as propostas. Você não tem condição de colocar [no início da discussão] um filtro e dizer 'olha, isso aqui não pode ser discutido'. A sociedade discute tudo e depois o governo é que vai dizer o que vai cumprir ou não.
Quais serão os canais de diálogo, além das conferências?
As mesas de negociação. Agora em março, por exemplo, vamos receber a pauta da Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) por causa do 'Grito da Terra'. Daqui a pouco, chega o MST com o 'Abril Vermelho'. Depois, tem a 'Marcha das Margaridas', movimento das mulheres agricultoras. Há a questão dos servidores públicos, cujo debate é no Ministério do Planejamento, mas aqui eles têm uma interlocução. Além disso, estamos buscando não ficar apenas na espera.
De que forma?
A ideia é estabelecer mesas permanentes de conversas.
Por exemplo?
O Guido [Mantega, ministro da Fazenda] conversa todo mês com os empresários. Por que ele não pode conversar com o movimento sindical? Vou tentar construir essa ponte. Vou chamar também os movimentos para discutir políticas nossas. Por exemplo: vamos fazer a desoneração da folha de pessoal. É importante chamar as centrais para conversar. Portanto, o plano é deixar o governo mais permeável a essa participação, a sugestões. É claro que, como ficou demonstrado agora na questão do salário mínimo, não tem conversa desse tipo sem tensão.
Durante a votação do salário mínimo no Congresso as centrais se juntaram à oposição para tentar derrotar o governo. Como o senhor explica esse fato?
É muito natural a tensão e a disputa entre governo e movimentos sociais. Não cabe aos movimentos serem cooptados por nós. Cabe a eles lutar, combater, porque eles trazem bandeiras que são históricas. Cabe ao governo receber essas demandas e tentar atendê-las no limite máximo, naquilo que julgamos prudente, responsável, ampliando os direitos sociais.
Por que não houve negociação no caso do salário mínimo?
Aí foi diferente. Não estávamos iniciando uma discussão. Tínhamos uma discussão já realizada. Então, para nós este ano não haveria discussão. Porque era um acordo [firmado em 2007] que julgamos como uma enorme vitória. Como houve essa circunstância em que o PIB de 2009 foi negativo e, na campanha eleitoral, o [José] Serra trouxe o debate dos R$ 600, isso provocou a retomada de um debate que já havia sido feito. Mas nós nos apressamos em dizer, desde a primeira conversa aqui, com o Nelson Barbosa [secretário-executivo do Ministério da Fazenda] e o Carlos Lupi [ministro do Trabalho], que o governo [sempre] negocia, mas que nesse caso não haveria negociação. 'Querem discutir a correção do IR? Vamos discutir, mas o salário mínimo não está em discussão'.
O governo trocou uma coisa pela outra?
De forma alguma. O IR é outra frente de negociação. Dissemos às centrais que não havia razão para mudar a regra do mínimo. Por duas razões. Primeiro, eu disse a eles, 'porque é uma conquista de vocês. Se a gente mudar agora, vocês estão nos autorizando no ano que vem, quando o aumento for de 12%, 13%, a rediscutir'. Este é o risco, inclusive desse questionamento que está se fazendo agora do decreto [que permite ao governo fixar anualmente o valor do mínimo sem passar novamente pelo Congresso].
Por que conter a evolução do mínimo?
Porque este é um ano muito especial. Todo mundo sabe que em 2009 e 2010 nós enfiamos o pé no acelerador para sair da crise. Desoneramos, estimulamos, fizemos concessões de toda sorte. 2011 se afigura como um ano em que você precisa controlar. A inflação está batendo na porta, tivemos que fazer um corte no orçamento que não é catastrófico, é um corte sobretudo de planos, projetos, mas é um corte importante. Temos que mandar um sinal claro para a sociedade de que o governo não vai brincar com a economia, não vai aceitar a indexação, porque, no fundo, se tem um prejuízo grande para o trabalhador é a inflação.
Por que as centrais sindicais, na sua avaliação, não aceitam essa tese?
Tem uma cultura nossa, que é a cultura sindicalista. Nunca esqueço de uma greve nossa, de 1979, em Curitiba, em que conseguimos 70% de aumento e, mesmo assim, não conseguimos repor a inflação naquele ano. Temos uma cultura de reivindicação que prioriza mais o índice do que propriamente a perda inflacionária. Depois, tem um problema: existem seis centrais sindicais e há uma disputa enorme entre elas para ver quem é mais combativa e quem não trai a sua base. A Força Sindical está dizendo agora que a CUT não foi combativa na questão do salário mínimo. É uma cultura que eu acho ruim, que deixa de cumprir um papel mais amplo, mais responsável. Não quero dizer que elas são irresponsáveis e admito que não podemos esperar das centrais uma conduta que não seja a de lutar pelos direitos dos trabalhadores porque, seja como for, é verdade também que o mínimo, criado pela Constituição de 1946, segundo o Dieese, deveria ser hoje de mais de R$ 2,3 mil. Há uma defasagem histórica. O problema é que você não vai repor isso da noite para o dia. Vamos fazendo uma política de valorização que corrige distorções, mas o país não aguentaria estabelecer um mínimo de R$ 2 mil. Seria uma completa loucura.
O presidente Lula unificou o movimento sindical em torno dele. O Ministério do Trabalho é comandado pelo PDT e pela Força Sindical, adversária histórica da CUT. O senhor teme dificuldades nessa relação nos próximos anos?
A unificação em torno do governo se fez no final do governo. Em 2006, o Paulinho [Paulo Pereira da Silva, deputado e presidente da Força] não fez campanha para o Lula. O apoio se deu depois de muita construção, muito convencimento, de uma política evidentemente muito favorável aos trabalhadores. Foi quase uma rendição. Eles não podiam ficar contra a base. Não vai ser diferente em relação à Dilma. O Lula epidermicamente tinha uma linguagem que ajudava muito, uma sedução. A Dilma tem outro estilo, mas não tem outra linha. A ordem no governo é para que haja diálogo. Vai ser diferente do Lula por causa disso: ela não vai ficar colocando chapeuzinho.
O senhor não teme um rompimento com a Força Sindical, por exemplo?
Conversei nesta mesa com o Paulinho no dia da votação do mínimo: 'Quero combinar uma coisa com vocês: não vamos queimar pontes.' O governo não tem prazer em vencer um aliado, que são as forças sindicais. É uma disputa que estamos achando correta dentro da nossa responsabilidade. Muitos temas ainda vão se colocar. Vencido o mínimo, vamos discutir o IR, depois outras questões, como os aposentados e a desoneração da folha. Não acho provável que haja uma ruptura, a menos que haja uma enorme crise e, se as bases estiverem descontentes com o governo, pode ocorrer. Mas ninguém ali queima nota de R$ 100. Se as bases acharem que o governo está certo, o dirigente sindical não vai fazer uma aventura de romper porque tem um monte de eleição sindical este ano.
No caso dos aposentados, o que vai ser discutido?
Uma política geral de valorização dos aposentados.
De que forma?
Vamos pensar a questão da Saúde. Uma das coisas que pesam no bolso dos aposentados é o preço dos medicamentos. Já temos uma linha de medicamentos para hipertensão e diabetes. Vamos avaliar para outras doenças.
Pode ter algo em relação ao valor do benefício?
Pode vir a ter, não vou dizer que não.
O ex-presidente Lula chamou as centrais de "oportunistas", criticando-as por causa da posição delas em relação ao salário mínimo. Ele fez isso a pedido da presidente Dilma?
Não. Eu é que manifestei a ele, lá em Dacar, umas preocupações que a gente estava tendo.
Em relação a quê?
Eu disse a ele: 'Estão tentando abrir uma cunha entre você e a Dilma, dizendo que no seu tempo tinha tudo e que com a Dilma não vai ter nada. E na imprensa já se tenta colocar que a Dilma é séria, responsável, e você era gastador'.
Como ele reagiu?
Ele respondeu: 'Você tem toda a razão. Na primeira oportunidade eu vou dar uma dura porque esses caras [os sindicalistas] estão querendo jogar fora um acordo que eu fiz com eles. Não admito uma coisa dessas, foi difícil, nós costuramos, não estou entendendo'. Foi uma avaliação dele. E logo depois de conversa, ele deu aquela declaração.
Em quanto o governo admite corrigir a tabela do IR?
Já asseguramos 4,5%, que é o centro da meta de inflação. Votado o salário mínimo no Senado, vamos dar uma olhada no orçamento para ver se é possível ir além. É pouco provável. Se for 4,5%, eu não vou chamar as centrais para conversar à toa.
O senhor não teme que as regras de correção do salário mínimo e da tabela do IR dificultem o controle da inflação no Brasil, à medida que reintroduzem mecanismos de indexação da economia?
É evidente que tem que tomar cuidado. Nossa resistência no IR de ir além dos 4,5% é por isso. Se dermos 5%, 5,5%, estaremos projetando inflação superior à que estamos perseguindo. Mas sabemos que o salário mínimo tem uma prevalência da questão social. As centrais argumentam com razão que o sujeito, quando recebe um aumento salarial, vai para uma faixa superior e o Leão come quase tudo que ele ganhou. [A correção da tabela] é mais uma questão de justiça. E a gente aposta que a economia continuará crescendo 4,5%, 5%, então, a arrecadação de impostos não vai ser prejudicada. Agora, estamos muito de olho na coisa da inflação. Vamos ter uma política muito severa para impedir a volta da inflação.
A presidente deixou claro, durante a campanha, que o MST é um movimento aliado, mas que ela não permitirá ilegalidades, como invasões de prédios públicos nem fazendas produtivas. O que muda na relação com o MST?
Nada. O Lula tinha aquela bonomia toda, mas ele nunca aliviou. Vocês não imaginam quantas vezes o MST esteve aqui, invadindo prédios públicos e pedindo audiência com o presidente, e ele dizia: 'Não, eu só converso depois que eles saírem'. Não vou enganar vocês dizendo que vamos passar quatro anos sem que o MST ocupe terras, isso é uma bobagem. Eles têm autonomia. Vamos tentar azeitar ao máximo o Incra, que tem uma estrutura muito difícil, enferrujada, muito desgastada. Vamos fazer um acordo para estimular muito a qualificação dos assentamentos, como as cooperativas. Agora, você tem um passivo de gente debaixo de lona.
O governo tem ideia de quantos estão nessa situação?
É difícil saber, mas esse número diminuiu muito a partir do emprego quase pleno que temos na economia no momento. Houve um tempo em que uma das grandes fontes do MST era o pessoal da periferia das grandes cidades, o que também trouxe muitos problemas para eles porque eram pessoas que iam para o campo sem ter vocação rural. Eles sabem. Não temos dúvida de que há ainda um passivo a ser coberto, de gente que precisa de terra, então, não é que não vai ter mais reforma agrária. Vai continuar tendo, mas vamos trabalhar fortemente na qualificação do assentamento porque a pior coisa que pode acontecer com o MST é um assentamento que vire uma favela rural.
Mas como o governo vai lidar com as invasões?
O que você não pode nunca imaginar é que vá haver criminalização do movimento neste governo. Não tem margem nenhuma para isso. Vamos tentar persuadir os companheiros de que é muito importante o diálogo. E, para dialogar com o governo, não podemos dialogar nos acumpliciando com a ilegalidade. Não vamos nunca ceder desse ponto de vista. As ações vão ocorrer, podem ocorrer, mas depois vai ter que ter recuo. Não somos aqui militantes, isso aqui não é um partido, isso aqui é um governo. Nem sempre você pode fazer o que gostaria. Tem que agir dentro dos parâmetros. A fala da presidente vai nessa linha.
Qual foi o papel que a presidente Dilma designou ao senhor?
Ela teve uma conversa muito simples comigo. Disse: 'Gilbertinho, preciso de você porque eu quero que alguém me traga a realidade dos movimentos sociais, as demandas, as carências, as crises, alguém que me sensibilize para esse sofrimento do povo, alguém que diga a verdade. Não quero ser enganada nunca'.
Na prática, o que significa isso?
Significa que cabe a mim fazer a ponte. Todo ministério tem diálogo com os movimentos sociais. Minha área não tem o monopólio desses contatos, mas é o lugar, digamos, onde se organiza esse diálogo. Começou com o salário mínimo, em que fiz reuniões com as centrais sindicais.
Central sindical se enquadra no conceito de movimento social?
Sim, as centrais são a ponta de lança, até pela nossa tradição de relação. Estão incluídos também os chamados movimentos populares, como o MST, os movimentos indígena, dos negros, de gays e lésbicas, enfim, todas as formas de organização da sociedade, além das ONGs e das igrejas.
Como vai se estabelecer essa ponte?
Vamos acompanhar todas as conferências. Ao longo de oito anos, o governo Lula fez 73 conferências temáticas. Queremos democratizar ainda mais essas conferências. O governo tem se apropriado bem das propostas. Algumas, como aquela dos direitos humanos, são polêmicas. O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), por exemplo, foi fruto de uma conferência.
Como evitar que o governo vete, no fim, um documento aprovado numa conferência, como ocorreu no caso da criação da Comissão da Verdade?
O problema do PNDH é que a conclusão da conferência foi transformada em decreto do presidente Lula. O governo absorveu na totalidade as propostas. Você não tem condição de colocar [no início da discussão] um filtro e dizer 'olha, isso aqui não pode ser discutido'. A sociedade discute tudo e depois o governo é que vai dizer o que vai cumprir ou não.
Quais serão os canais de diálogo, além das conferências?
As mesas de negociação. Agora em março, por exemplo, vamos receber a pauta da Contag (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura) por causa do 'Grito da Terra'. Daqui a pouco, chega o MST com o 'Abril Vermelho'. Depois, tem a 'Marcha das Margaridas', movimento das mulheres agricultoras. Há a questão dos servidores públicos, cujo debate é no Ministério do Planejamento, mas aqui eles têm uma interlocução. Além disso, estamos buscando não ficar apenas na espera.
De que forma?
A ideia é estabelecer mesas permanentes de conversas.
Por exemplo?
O Guido [Mantega, ministro da Fazenda] conversa todo mês com os empresários. Por que ele não pode conversar com o movimento sindical? Vou tentar construir essa ponte. Vou chamar também os movimentos para discutir políticas nossas. Por exemplo: vamos fazer a desoneração da folha de pessoal. É importante chamar as centrais para conversar. Portanto, o plano é deixar o governo mais permeável a essa participação, a sugestões. É claro que, como ficou demonstrado agora na questão do salário mínimo, não tem conversa desse tipo sem tensão.
Durante a votação do salário mínimo no Congresso as centrais se juntaram à oposição para tentar derrotar o governo. Como o senhor explica esse fato?
É muito natural a tensão e a disputa entre governo e movimentos sociais. Não cabe aos movimentos serem cooptados por nós. Cabe a eles lutar, combater, porque eles trazem bandeiras que são históricas. Cabe ao governo receber essas demandas e tentar atendê-las no limite máximo, naquilo que julgamos prudente, responsável, ampliando os direitos sociais.
Por que não houve negociação no caso do salário mínimo?
Aí foi diferente. Não estávamos iniciando uma discussão. Tínhamos uma discussão já realizada. Então, para nós este ano não haveria discussão. Porque era um acordo [firmado em 2007] que julgamos como uma enorme vitória. Como houve essa circunstância em que o PIB de 2009 foi negativo e, na campanha eleitoral, o [José] Serra trouxe o debate dos R$ 600, isso provocou a retomada de um debate que já havia sido feito. Mas nós nos apressamos em dizer, desde a primeira conversa aqui, com o Nelson Barbosa [secretário-executivo do Ministério da Fazenda] e o Carlos Lupi [ministro do Trabalho], que o governo [sempre] negocia, mas que nesse caso não haveria negociação. 'Querem discutir a correção do IR? Vamos discutir, mas o salário mínimo não está em discussão'.
O governo trocou uma coisa pela outra?
De forma alguma. O IR é outra frente de negociação. Dissemos às centrais que não havia razão para mudar a regra do mínimo. Por duas razões. Primeiro, eu disse a eles, 'porque é uma conquista de vocês. Se a gente mudar agora, vocês estão nos autorizando no ano que vem, quando o aumento for de 12%, 13%, a rediscutir'. Este é o risco, inclusive desse questionamento que está se fazendo agora do decreto [que permite ao governo fixar anualmente o valor do mínimo sem passar novamente pelo Congresso].
Por que conter a evolução do mínimo?
Porque este é um ano muito especial. Todo mundo sabe que em 2009 e 2010 nós enfiamos o pé no acelerador para sair da crise. Desoneramos, estimulamos, fizemos concessões de toda sorte. 2011 se afigura como um ano em que você precisa controlar. A inflação está batendo na porta, tivemos que fazer um corte no orçamento que não é catastrófico, é um corte sobretudo de planos, projetos, mas é um corte importante. Temos que mandar um sinal claro para a sociedade de que o governo não vai brincar com a economia, não vai aceitar a indexação, porque, no fundo, se tem um prejuízo grande para o trabalhador é a inflação.
Por que as centrais sindicais, na sua avaliação, não aceitam essa tese?
Tem uma cultura nossa, que é a cultura sindicalista. Nunca esqueço de uma greve nossa, de 1979, em Curitiba, em que conseguimos 70% de aumento e, mesmo assim, não conseguimos repor a inflação naquele ano. Temos uma cultura de reivindicação que prioriza mais o índice do que propriamente a perda inflacionária. Depois, tem um problema: existem seis centrais sindicais e há uma disputa enorme entre elas para ver quem é mais combativa e quem não trai a sua base. A Força Sindical está dizendo agora que a CUT não foi combativa na questão do salário mínimo. É uma cultura que eu acho ruim, que deixa de cumprir um papel mais amplo, mais responsável. Não quero dizer que elas são irresponsáveis e admito que não podemos esperar das centrais uma conduta que não seja a de lutar pelos direitos dos trabalhadores porque, seja como for, é verdade também que o mínimo, criado pela Constituição de 1946, segundo o Dieese, deveria ser hoje de mais de R$ 2,3 mil. Há uma defasagem histórica. O problema é que você não vai repor isso da noite para o dia. Vamos fazendo uma política de valorização que corrige distorções, mas o país não aguentaria estabelecer um mínimo de R$ 2 mil. Seria uma completa loucura.
O presidente Lula unificou o movimento sindical em torno dele. O Ministério do Trabalho é comandado pelo PDT e pela Força Sindical, adversária histórica da CUT. O senhor teme dificuldades nessa relação nos próximos anos?
A unificação em torno do governo se fez no final do governo. Em 2006, o Paulinho [Paulo Pereira da Silva, deputado e presidente da Força] não fez campanha para o Lula. O apoio se deu depois de muita construção, muito convencimento, de uma política evidentemente muito favorável aos trabalhadores. Foi quase uma rendição. Eles não podiam ficar contra a base. Não vai ser diferente em relação à Dilma. O Lula epidermicamente tinha uma linguagem que ajudava muito, uma sedução. A Dilma tem outro estilo, mas não tem outra linha. A ordem no governo é para que haja diálogo. Vai ser diferente do Lula por causa disso: ela não vai ficar colocando chapeuzinho.
O senhor não teme um rompimento com a Força Sindical, por exemplo?
Conversei nesta mesa com o Paulinho no dia da votação do mínimo: 'Quero combinar uma coisa com vocês: não vamos queimar pontes.' O governo não tem prazer em vencer um aliado, que são as forças sindicais. É uma disputa que estamos achando correta dentro da nossa responsabilidade. Muitos temas ainda vão se colocar. Vencido o mínimo, vamos discutir o IR, depois outras questões, como os aposentados e a desoneração da folha. Não acho provável que haja uma ruptura, a menos que haja uma enorme crise e, se as bases estiverem descontentes com o governo, pode ocorrer. Mas ninguém ali queima nota de R$ 100. Se as bases acharem que o governo está certo, o dirigente sindical não vai fazer uma aventura de romper porque tem um monte de eleição sindical este ano.
No caso dos aposentados, o que vai ser discutido?
Uma política geral de valorização dos aposentados.
De que forma?
Vamos pensar a questão da Saúde. Uma das coisas que pesam no bolso dos aposentados é o preço dos medicamentos. Já temos uma linha de medicamentos para hipertensão e diabetes. Vamos avaliar para outras doenças.
Pode ter algo em relação ao valor do benefício?
Pode vir a ter, não vou dizer que não.
O ex-presidente Lula chamou as centrais de "oportunistas", criticando-as por causa da posição delas em relação ao salário mínimo. Ele fez isso a pedido da presidente Dilma?
Não. Eu é que manifestei a ele, lá em Dacar, umas preocupações que a gente estava tendo.
Em relação a quê?
Eu disse a ele: 'Estão tentando abrir uma cunha entre você e a Dilma, dizendo que no seu tempo tinha tudo e que com a Dilma não vai ter nada. E na imprensa já se tenta colocar que a Dilma é séria, responsável, e você era gastador'.
Como ele reagiu?
Ele respondeu: 'Você tem toda a razão. Na primeira oportunidade eu vou dar uma dura porque esses caras [os sindicalistas] estão querendo jogar fora um acordo que eu fiz com eles. Não admito uma coisa dessas, foi difícil, nós costuramos, não estou entendendo'. Foi uma avaliação dele. E logo depois de conversa, ele deu aquela declaração.
Em quanto o governo admite corrigir a tabela do IR?
Já asseguramos 4,5%, que é o centro da meta de inflação. Votado o salário mínimo no Senado, vamos dar uma olhada no orçamento para ver se é possível ir além. É pouco provável. Se for 4,5%, eu não vou chamar as centrais para conversar à toa.
O senhor não teme que as regras de correção do salário mínimo e da tabela do IR dificultem o controle da inflação no Brasil, à medida que reintroduzem mecanismos de indexação da economia?
É evidente que tem que tomar cuidado. Nossa resistência no IR de ir além dos 4,5% é por isso. Se dermos 5%, 5,5%, estaremos projetando inflação superior à que estamos perseguindo. Mas sabemos que o salário mínimo tem uma prevalência da questão social. As centrais argumentam com razão que o sujeito, quando recebe um aumento salarial, vai para uma faixa superior e o Leão come quase tudo que ele ganhou. [A correção da tabela] é mais uma questão de justiça. E a gente aposta que a economia continuará crescendo 4,5%, 5%, então, a arrecadação de impostos não vai ser prejudicada. Agora, estamos muito de olho na coisa da inflação. Vamos ter uma política muito severa para impedir a volta da inflação.
A presidente deixou claro, durante a campanha, que o MST é um movimento aliado, mas que ela não permitirá ilegalidades, como invasões de prédios públicos nem fazendas produtivas. O que muda na relação com o MST?
Nada. O Lula tinha aquela bonomia toda, mas ele nunca aliviou. Vocês não imaginam quantas vezes o MST esteve aqui, invadindo prédios públicos e pedindo audiência com o presidente, e ele dizia: 'Não, eu só converso depois que eles saírem'. Não vou enganar vocês dizendo que vamos passar quatro anos sem que o MST ocupe terras, isso é uma bobagem. Eles têm autonomia. Vamos tentar azeitar ao máximo o Incra, que tem uma estrutura muito difícil, enferrujada, muito desgastada. Vamos fazer um acordo para estimular muito a qualificação dos assentamentos, como as cooperativas. Agora, você tem um passivo de gente debaixo de lona.
O governo tem ideia de quantos estão nessa situação?
É difícil saber, mas esse número diminuiu muito a partir do emprego quase pleno que temos na economia no momento. Houve um tempo em que uma das grandes fontes do MST era o pessoal da periferia das grandes cidades, o que também trouxe muitos problemas para eles porque eram pessoas que iam para o campo sem ter vocação rural. Eles sabem. Não temos dúvida de que há ainda um passivo a ser coberto, de gente que precisa de terra, então, não é que não vai ter mais reforma agrária. Vai continuar tendo, mas vamos trabalhar fortemente na qualificação do assentamento porque a pior coisa que pode acontecer com o MST é um assentamento que vire uma favela rural.
Mas como o governo vai lidar com as invasões?
O que você não pode nunca imaginar é que vá haver criminalização do movimento neste governo. Não tem margem nenhuma para isso. Vamos tentar persuadir os companheiros de que é muito importante o diálogo. E, para dialogar com o governo, não podemos dialogar nos acumpliciando com a ilegalidade. Não vamos nunca ceder desse ponto de vista. As ações vão ocorrer, podem ocorrer, mas depois vai ter que ter recuo. Não somos aqui militantes, isso aqui não é um partido, isso aqui é um governo. Nem sempre você pode fazer o que gostaria. Tem que agir dentro dos parâmetros. A fala da presidente vai nessa linha.