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terça-feira, 4 de agosto de 2009

Onde está nosso Deus nos Conflitos no Campo?

Gilvander Luís Moreira[1]

(Artigo publicado no livro “Conflitos no campo Brasil 2008 – CPT -, Goiânia, Coord. Antonio Canuto, Cássia Regina da Silva Luz, José Batista Gonçalves Afonso e Maria Madalena, pp. 120-126.)

“As lágrimas são meu pão noite e dia, e todo dia me perguntam: “Onde está o teu Deus?”” (Salmo 42,4)
“Esmigalhando-me os ossos meus opressores me insultam, repetindo todo o dia: “Onde está o teu Deus?”” (Salmo 42,11)
“Por que diriam as nações: “Onde está o Deus deles?”” (Salmo 79,10; 115,2)

1. Iniciando a conversa
Pediram a mim que fizesse uma análise teológica dos Conflitos no Campo, no Brasil. Eis um bom desafio. O que seria uma análise teológica? Tradicionalmente, entende-se por teologia um estudo sobre Deus e assuntos relativos a Deus: céu, ressurreição, anjos, vida eterna ... Mas, após o Concílio Vaticano II, a partir da vivência das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, com a Teologia da Libertação, muda-se o paradigma sobre o fazer teologia. Agora, fazer teologia diz respeito a refletir sobre qualquer assunto a partir da fé no Deus da vida: Deus de Abraão, de Isaac, de Moisés, dos profetas, das profetisas, de Jesus de Nazaré, dos mártires, tais como: Dom Oscar Romero, Chico Mendes, Padre Josimo, Padre Ezequiel Ramim, Irmã Dorothy e os “144 mil” que revelam a presença do Deus solidário e libertador no nosso meio. Nessa nova perspectiva teológica tudo se torna passível de ser teologizado. Nascem assim muitas Teologias específicas: Teologia Negra, que demonstra que Deus não faz distinção de ninguém, de nenhuma etnia. Todos os povos têm a mesma dignidade; Teologia Indígena, que ajuda a percebermos que a terra, as águas e toda a biodiversidade é sagrada. Há uma aura de divino que permeia e perpassa tudo. Logo, os povos indígenas devem ser respeitados na sua cultura e na sua religiosidade e ter os seus direitos assegurados, a demarcação de suas terras e tantos outros direitos; Teologia da Água que, em tempos da maior devastação ambiental da história da humanidade, ajuda-nos a crescer em encantamento, veneração e respeito por todas as criaturas da biodiversidade e anima lutas sem trégua em prol da preservação ambiental, numa marcha rumo a uma sociedade sustentável; Teologia da Mulher, da Economia, da Política, da Ecologia e tantas outras, entre as quais, a Teologia da Terra, dos filhos da terra e da terra dos filhos e filhas de Deus. Neste texto apresentamos alguns aspectos da Teologia da Terra e da Água que podem ajudar a entender onde está Deus nos “Conflitos no Campo”.

2. Pano de fundo
A ONG WWF divulgou, em 2006, relatório anual sobre as condições de vida e capacidade dos recursos naturais do Planeta Terra. As informações reveladas são alarmantes: “Os seres humanos já usam recursos naturais a uma taxa 25% maior do que a capacidade do planeta de regenerá-los.” Se não houver uma mudança de modelo de desenvolvimento e de comportamentos, em 2050 “a Humanidade precisará de dois planetas Terra para prover suas necessidades.” Demonstra também que entre 1970 e 2003, o planeta perdeu 30% de sua diversidade biológica, “o que indica que as extinções estão se acelerando.[1]
O relatório do “Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas” (IPCC)[2], de 02 de Fevereiro de 2007, é de alerta máximo!.O gelo está derretendo no Pólo Norte e no Pólo Sul. A água vai ficar mais salgada, as chuvas vão aumentar, o nível dos mares está subindo. As ondas e os ventos vão mudar em frequência e força. Haverá tempestades muito fortes, furacões, mais calor. Isso acontece porque a produção industrial depende de combustíveis fósseis, como petróleo e carvão ou gás mineral que unidos ao desmatamento em grande escala interferem drasticamente nas condições climáticas do planeta. A “Revolução Industrial” está destruindo o mundo e a própria humanidade.
Nós perdemos a comunhão com o Planeta Terra. Diz a sabedoria popular que “na frente estão as matas, depois o ser humano passa e deixa um deserto”. Dentro de vinte anos a água potável poderá faltar para 40% da humanidade. As empresas transnacionais já estão de olho gordo no “petróleo azul”. Em alguns lugares do planeta a água já é controlada com o poder das armas. A vida na Terra está ameaçada, a nossa única casa comum está ficando sem este combustível sagrado: a água.
Os Sem Terra da Via Campesina - entidade internacional, presente em 74 países, composta por Movimentos que lutam pela Reforma Agrária integral - bradam: “Não aceitamos sementes transgênicas. As sementes são (e devem continuar sendo) um patrimônio da humanidade.” Este grito ecoou em várias atividades nos nove Fóruns Sociais Mundiais já acontecidos. A semente está no início e no fim do processo da vida. Quem controla a semente controla o fio da vida e o mercado. Primeiro tentaram patentear as sementes. 97% das sementes transgênicas servem mais para as transnacionais venderem seus herbicidas e produtos químicos. Quem quer impor os transgênicos quer acabar com 12 mil anos de evolução das sementes. Estão preparando também a semente exterminadora do futuro, a que gera sementes estéreis. Uma equação matemática necessária hoje é TERRA + SEMENTE NATURAL = SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Enfim, sem semente natural não há alimentação de qualidade, nem povo e nem nação.
A humanidade vive uma das maiores encruzilhadas da história humana. Das duas uma: ou nos salvamos todos ou pereceremos todos. Desta vez não haverá uma arca de Noé para salvar um casal de cada espécie. "Ou o ser humano se torna o anjo protetor da Mãe Terra e da Irmã Água ou ele será o anjo exterminador da nossa única casa comum, o planeta Terra". Ou recriamos a vida com relações e estruturas de fraternidade ou vai acontecer a extinção da raça humana com uma infinidade de outras espécies.[3]
O modo de produção capitalista, o mais insustentável de todos, está assassinando a Terra, nossa única casa comum, que é viva, sagrada e nossa mãe. Eis um imperativo vital: cuidar de todo ser vivo. Deve reinar em nossos corações a integridade e uma justiça sociocósmica. Nós somos parte da terra. Entramos e saímos da vida o tempo todo.
A CARTA DA TERRA, que é a Bíblia do planeta Terra, nos mostra que a Terra é viva. Devemos partir das revoluções moleculares, começando a partir de nós mesmos. Queremos paz perene com compromisso, mas não pacificação. Diálogo consigo mesmo, com o outro, com os antepassados, com o futuro, é o que descortina novos horizontes. Isso implica superar a ideia de que o ser humano foi colocado na terra para dominar e subjugar toda a criação.
Os astronautas, ao contemplarem a Terra de fora dela, exclamaram: “É pequena. Cabe na palma da nossa mão. Olhando de cima, não há distinção entre humanidade e Terra. É uma coisa só”. Essa visão está em consonância com o relato da criação o qual diz que o ser humano foi criado do barro. O nome Adão vem de Adamah (= terra fecunda). Somos terra fértil, húmus. O nome Adão quer dizer “filho da terra fértil”. Há uma grande unidade em tudo. Pouco mais de 100 elementos constituem tudo. Somos um elo vivo da grande rede da vida. Das bactérias até nós todos, existem os mesmos elementos. Somos um alfabeto vivo: cada letra só tem sentido unida com outras. Somos todos interdependentes. A nova Física e a Física Quântica nos ensinam que “tudo no universo tem a ver com tudo em todos os pontos. Há uma inter-retrodependência. Dependemos uns dos outros, entre nós, “de trás pra frente e de frente pra trás”. A comunidade de vida, composta por humanos e não humanos, forma um organismo único, universal.
Nós, agentes da Comissão Pastoral da Terra – CPT – atuamos solidariamente junto aos sem-terra (os excluídos do campo, desorganizados) e os Sem Terra (camponeses em processo de organização e atuantes em lutas concretas) não apenas por motivações sociológicas e/ou filosóficas. A ira divina e o espírito profético, que movia os profetas e as profetisas da Bíblia, nos impulsionam para, além da solidariedade com os camponeses empobrecidos e excluídos, denunciarmos as injustiças que rondam o campo brasileiro. Os povos da Bíblia, exilados na Babilônia, espezinhados nas garras do império de Nabucodonosor, estando longe do templo, que era a casa de Deus; longe da terra conquistada, que era sinal da bênção de Deus; sem a presença dos grandes profetas, tais como, Elias, Isaías, Oséias, Amós, se perguntavam: “Onde está nosso Deus?” Exilado na própria terra, na Babilônia chamada Brasil, o povo Sem Terra busca e sente a presença amorosa do Deus solidário e libertador na marcha de libertação da mãe-terra.
O “Caderno de Conflitos no Campo”, da CPT, há 34 anos, com muita diligência, presta esse serviço à sociedade brasileira. O Caderno começou fino e vem, ano a ano, engrossando, porque, por um lado – infelizmente, crescem os conflitos no Campo; por outro lado, cresce - graças a Deus e a muita luta - a capacidade de sistematização e de reflexão sobre os conflitos.
A violação dos direitos sagrados dos bens da terra e dos povos da terra, no Brasil, iniciou-se com a invasão do país pelos brancos portugueses. Os povos indígenas, que falavam mais de 1200 línguas, em 1500, foram golpeados com a instalação da Empresa Brasil. O segundo versículo da Bíblia diz que o Espírito de Deus “paira” sobre as águas, melhor dizendo, choca as águas, acaricia as águas, envolve as águas, está nas águas. Águas, em Gênesis 1,2, é símbolo da realidade. Logo, o/a autor/a do texto bíblico queria assinalar que a luz e a força divina permeiam e perpassam tudo, estão em tudo. Infelizmente, os portugueses, ao aportarem por aqui, não perceberam isso nos povos indígenas e nem na riquíssima biodiversidade aqui encontrada: um “paraíso terrestre”.
De 1500 para cá, profetas e profetisas ergueram sempre a voz contra os desmandos e arbitrariedades cometidos contra os camponeses. A escravidão foi denunciada por uns e apoiada pelos que lucravam com ela. A CPT, hoje, tem a grandeza de continuar pondo o dedo numa das maiores feridas, ainda aberta, que são multidões de seres humanos submetidos a situação análoga à de escravidão. São milhares de denúncias de trabalho escravo, anualmente. Uma equipe móvel do Ministério do Trabalho, com auxílio da Polícia Federal, vem resgatando mais de 5 mil trabalhadores anualmente. Mas o triste é que as multas raramente são pagas e os trabalhadores, sem condições mínimas para sobreviver, acabam recaindo e são escravizados novamente. Isso é muito bem demonstrado nos filmes-documentários “Nas terras do bem virá”, “Tabuleiro da Cana: Xadrez de cativeiro” “Bagaço” e “Terras de Quilombos”. Esse aviltamento da dignidade humana é um pecado que clama aos céus. O Deus da vida conta conosco para que essa chaga seja curada, o que só se resolverá com Reforma Agrária na perspectiva dos pequenos da terra. Enquanto a prioridade for o agronegócio, os camponeses, a mãe terra e a irmã água continuarão sendo profanados.
A iníqua estrutura fundiária brasileira continua sendo uma ignomínia. Manter a concentração da propriedade da terra é uma traição completa ao projeto do Deus da vida que se comoveu com o sofrimento do povo e desceu para libertá-lo das garras do imperialismo dos faraós do Egito. Assim como Moisés, Miriam e as parteiras que protagonizaram o processo de libertação dos camponeses escravizados no Egito, milhares de lideranças camponesas, movidas pelo espírito de Zumbi dos Palmares, de Antônio Conselheiro, do monge José Maria - líder do Contestado -, de Francisco Julião, das Ligas Camponesas, de Padre Josimo da CPT, vêm empreendendo uma luta titânica em prol da reforma agrária tão necessária e sistematicamente “empurrada com a barriga” pela classe política brasileira que “reza na cartilha” do lobby da bancada ruralista no Congresso Nacional. Esta falseia o direito criando leis que dificultam a realização da reforma agrária. “Os profetas gritavam: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (Miqueias 2,2). Parodiando, devemos bradar: Ai dos políticos profissionais, escória da política brasileira, e de empresários latifundiários que não ouvem os clamores das mais de 200 mil famílias de sem-terra abrigados debaixo de lonas pretas, insistindo no elementar direito de ter um pedacinho de terra para criar com dignidade seus filhos. Ai de quem não aprova Emenda Constitucional que determine a expropriação de fazendas onde for encontrado trabalho escravo ou plantações de droga.
Segundo a Bíblia, a terra pertence a Deus (Lev 25,23); deve repousar de sete em sete anos, deve alimentar seus filhos, deve passar de pais para filhos. Na terra Brasil, infelizmente, a terra é cobiçada como mercadoria, como fonte de poder, de coronelismo. Está concentrada em poucas mãos gananciosas para garantir que uma multidão de “vidas secas” continue migrando para as periferias das grandes cidades de modo a reforçar o imenso exército de reserva. A concentração da propriedade tem a função de ser uma espada de Dâmocles na cabeça dos trabalhadores, pois os patrões dizem sempre assim: “Contente-se com seu salário e agrade à empresa, pois há uma legião de desempregados que estão de olho no seu emprego”. O Deus da vida e todos nós da CPT nos comovemos com a dor dos deserdados da terra e por isso denunciamos a transformação da terra em mercadoria e o aniquilamento da dignidade humana e o aviltamento da beleza e da riqueza espiritual existente em toda a biodiversidade.
A CPT, nos conflitos pela terra, inspirada pelos ensinamentos de Jesus de Nazaré e pela prática libertária dos profetas e profetisas da Bíblia, e solidariza-se com os camponeses sem-terra e luta ao lado deles pela partilha da mãe terra. Defende a vida ameaçada. Assim, percebemos que reforma agrária é evangelho para os sem-terra, uma ótima notícia, mas é péssima notícia para os latifundiários que insistem em sequestrar a terra em suas mãos e, como Caim, seguir assassinando camponeses, que são outros Abeis (Gn 4,8). O sangue dos 27 camponeses assassinados em 2008 clamam por justiça. A pergunta de Deus dirigida a Caim, dirige-se também aos jagunços e mandantes dos assassinatos: “Onde está teu irmão?” Acompanhando o povo sem-terra podemos dizer que devemos amar todas as pessoas, mas não dá para amar todo mundo do mesmo jeito. Devemos amar os sem-terra colocando-nos ao lado deles para com eles lutar pelos seus direitos. Devemos amar os latifundiários e os empresários do agronegócio, lutando para retirar das mãos deles as armas de opressão: o latifúndio, o poder judiciário que impede o acesso de todos à propriedade, a manutenção dos índices de produtividade defasados há 33 anos, a privatização da terra. Somente assim os milhões de camponeses empobrecidos terão direito à vida.
Nos últimos anos, no campo brasileiro, temos assistido a uma investida muito forte das grandes empresas transnacionais que estão disseminando monoculturas que causam uma tremenda devastação ambiental, expulsam o povo para as periferias das cidades, diminui a produção de alimentos. Isso tudo dentro de uma política segundo a qual “importa exportar”. Assim, a soberania sobre o território brasileiro fica cada vez mais vulnerável, pois um território sem povo é um território sem soberania. Esse fato nos lembra as primeiras comunidades cristãs que, oprimidas pelo império romano, denunciavam o privilegio aos produtos para exportação. Relendo a história do povo e analisando a conjuntura, o livro do Apocalipse denuncia a injustiça institucionalizada que apregoava: “Um litro de trigo por um denario e três litros de cevada por um denario! Quanto ao óleo e ao vinho, não causes prejuízo.” Quer dizer, o preço dos alimentos básicos – trigo e cevada – para o povo estava caríssimo, pois um trabalhador ganhava, normalmente, um denario por dia. Assim, tinha que trabalhar um dia inteiro sob o sol escaldante para comprar um só litro de trigo, “feijão e arroz” do povo daquela época. Mas, os produtos direcionados à exportação – óleo e vinho - não podiam sofrer com as crises. Logo, garantir superávit primário, continuar pagando juros absurdos da dívida pública, repassar dinheiro público para sustentar a engrenagem de empresas que interessam, via de regra, acumular lucros e mais lucros, tudo isso é se enquadrar em um projeto imperialista que desagrada profundamente o Deus da vida e seus filhos.

3. Ocupação de terras, luta profética
Em inúmeras passagens bíblicas, os profetas e as profetisas bradam, em nome do Deus da vida: “Queremos a justiça e o direito”. Isso não se mendiga, conquista-se na luta.
As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma “medida provisória” (= “Decreto-Lei”) que mandava matar as crianças do sexo masculino, organizaram-se e fizeram greve e desobediência civil. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à pessoa e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, diziam em seus corações as Mulheres do “sistema de saúde” do Egito. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso” (Ex 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade.
Os evangelhos da Bíblia[4] relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, ocupou o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que o laboratório e a sede da Aracruz que tem a cruz no seu nome, mas uma cruz de sangue e dor que ela impõe aos pobres da terra e à terra dos pobres. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: ‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio” (Jo 2,16; . Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte. Mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de mulheres e homens camponeses Sem Terra que não aceitam mais a opressão do latifúndio e da iniqua estrutura fundiária brasileira.
Movidos pelo espírito de Jesus de Nazaré e de todos os profetas e profetisas da Bíblia e mátires da luta pela Reforma Agrária, os Sem Terra seguem na luta cobrando o cumprimento da Constituição Federal de 1988. Para Isso, sabem que sem exercitar desobediência civil não terão nenhuma conquista social e, pior, serão cada vez mais excluídos. Por isso ocupam latifúndios como forma de realizar a tão sonhada e necessária reforma agrária.
Ocupação coletiva de terras é diferente de invasão com o fim de turbar a propriedade. A jurisprudência atesta isso. Dyrceu Cintra Júnior, no livro Questões agrárias, pondera: “O bem jurídico propriedade só existe enquanto bem constitucionalmente garantido – um direito público subjetivo – se cumprir sua função social. Tanto que não a cumprindo, fica autorizada sua negação máxima, a desapropriação”. O Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, do Superior Tribunal de Justiça, em 1997, afirmou que a postulação da reforma agrária “não pode ser confundida, identificada com o esbulho possessório, ou a alteração de limites”, é “expressão do direito de cidadania”. Evandro Lins e Silva, no prefácio do livro A ação política do MST, reconheceu nas ações de ocupação um direito fundamental: “Os conflitos no campo e as ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST -, ocupando latifúndios, terras devolutas, prédios públicos - são formas de pressão - o que querem os trabalhadores é assegurar a almejada conquista da igualdade social.”
Ocupação de terra é a forma mais eficiente e eficaz para forçar os governos a cumprir a tarefa da política agrária e tornou-se necessária e legítima como meio para a desapropriação, que é caminho para a reforma agrária. As desapropriações e os assentamentos se concentraram nas regiões de conflitos mais intensos exatamente porque ali ocorreram ocupações de terra. A luta pela terra só tem êxito quando há ocupação. Às ocupações o governo responde com uma política de assentamentos nas áreas de conflito. Sem ocupação, não sai reforma agrária.
A opção pela ocupação de latifúndios improdutivos mostra que reforma agrária vai muito além da questão da posse da terra. O processo de ocupação tem um significado especial para os próprios sem-terra. A decisão de apoderar-se de uma propriedade privada e nela estabelecer-se não é tarefa fácil, pois requer maturidade, coesão, disciplina e luta que gera a esperança. O MST ocupa, porque sabe que tipo de reforma agrária precisa: massiva, rápida e que mude a iníqua estrutura fundiária do país e haja justiça social com sustentabilidade ecológica.
“A ação das Mulheres da Via Campesina, na sede da Aracruz Celulose, está em consonância com as ações de Gandhi e Martin Luther King Jr., mártires dos oprimidos. Elas e eles fizeram desobediência civil: desafio a leis injustas sem agredir pessoas. Como gesto extremo, querem acordar consciências anestesiadas que são cúmplices de sistemas opressivos. A não violência de Gandhi e Luther King não diz respeito às coisas, mas, sim, às pessoas humanas”, pontua Plínio de Arruda Sampaio[5]. O boicote do sal e do tecido inglês na Índia, o dos ônibus segregacionistas no Sul dos Estados Unidos e tantos outros movimentos de desobediência civil em todo o mundo causaram grandes prejuízos materiais aos capitalistas, mas trouxeram conquistas para a humanidade.
Para os capitalistas, a terra, as águas, as sementes, o ar, as matas, a justiça e o direito, também, são recursos que devem ser explorados conforme seus interesses econômicos. Para os camponeses Sem Terra, esses elementos da natureza são dádivas e base da vida, não têm preço e jamais podem ser mercantilizados.
O Deus da vida e da esperança está nos camponeses Sem Terra em movimento e no Movimento dos camponeses Sem Terra.

4. Resgatando a Teologia da Criação
Há tribos indígenas que contam o seguinte mito para explicar o nascimento da lavoura na roça: O pai ia pescar. Ao voltar, a filha sempre perguntava: “O que pescou, papai?” O pai respondia assobiando. A filha disse à mãe: “Cave a terra e me enterre até o pescoço.” Após sete dias, o pai, estranhando o fato de a filha ter sido semienterrada, voltou ao local e, surpreso, constatou que a menina semienterrada tinha se transformado em uma roça de todos os tipos de cereais, verduras e frutas. Assim nasceu a roça, revelando a ligação umbilical entre a terra e a mulher.
Uma índia, ao arrancar a mandioca, conversa com a planta, um ser vivo. Não há separação entre nós e o “meio ambiente”. A comunidade de vida, composta por humanos e não humanos, forma um ambiente inteiro.
O movimento negro que luta contra o racismo diz: “Nosso início não está nas senzalas, mas na liberdade da África”. O autor bíblico queria dizer: no início está a criação, o espírito de Deus presente e envolvendo tudo. Não começamos no pecado, mas na liberdade da maravilha da criação, que se dá na evolução. Evolui-se criando e cria-se evoluindo.
“O Espírito (ruah, em hebraico) “pairava” sobre as águas”. (Gen 1,2b). O sopro divino (ruah) “agitava, revolvia, sagazeava, bailava, tocava, acariciava, abraçava, envolvia, chocava” as águas. Javé respirava nas águas. Namorava as águas. Talvez possamos dizer: Ruah e água não são duas realidades. Trata-se da mesma realidade sob ângulos diferentes. São “carne e unha”, inseparáveis. Em Gênesis 1,2b “água” é símbolo da realidade. Tudo é água, pois água está em tudo. Logo, não podemos entender água apenas no sentido físico. O autor bíblico quer dizer que o espírito de Deus está em tudo, permeia e perpassa tudo. Em tudo está uma aura de divino, de sagrado. Existe água não só nos rios, mas em tudo há água: em todos os corpos, em todos os seres vivos. A terra é um grande ser vivo, chamada por muitos de Gaia. Todos os seres vivos integram, mantendo identidades próprias, em uma grande sinfonia, o ser maior: o planeta Terra.
A Criação é boa, é muito boa[6], é beleza, é o ato primeiro. E Deus viu que a luz era boa, a terra, as águas, o firmamento, plantas, verduras, árvores frutíferas. Tudo é uma beleza e irradia a luz e a força divinas.
Sentindo a falta de terra que era sinal da bênção de Deus, o povo da Bíblia resgata as origens revelando um grande encantamento e reverência pela terra. Sente-se filho da terra.
Na teologia tradicional e na prática pastoral, por séculos e séculos, enfatizou-se demasiadamente, quase de forma absoluta, a exortação de Gen 1,26 em que Deus diz: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança e que ele domine sobre todos os “animais””. Uma interpretação ao pé da letra deste versículo resulta em vários problemas.
Não é somente o ser humano que é “imagem e semelhança” de Deus. É claro que há uma distinção e especificidade entre os seres humanos e os outros seres vivos, mas há beleza, grandeza e graça divina em todos os seres criados por Deus. Urge superarmos o antropocentrismo que tem feito tantos estragos à história humana.
A exortação para que o ser humano “domine vários seres vivos” – não todos - não pode também ser entendida no sentido de subjugar, dominar e tiranizar sobre todos e tudo. A “dominação” é circunscrita, não é sobre tudo e muito menos sobre todos os seres vivos.[7] Além do mais, temos que recordar a ênfase dada na segunda versão sobre a criação (Gen 2,4b-25) sobre o “cultivar, pastorear, ser jardineiro”. Olhando a totalidade das duas versões da criação (Gen 1,1-2,4a e Gen 2,4b-25) temos que concluir que o espírito de Deus pede cuidado, pastoreio e manuseio responsável socioecológico e jamais incentiva a dominação e a depredação como, infelizmente, o modelo capitalista de desenvolvimento vem fazendo.
Em Gênesis de 1 a 7 repete-se 19 vezes a expressão “segundo sua espécie”. Aparece em “semente, segundo sua espécie; ervas e frutos, segundo sua espécie; aves segundo sua espécie; animais, segundo sua espécie; tudo o que vive, segundo sua espécie”.[8] Essa insistência em enfatizar a beleza e a grandeza da biodiversidade demonstra o sonho de transfigurar a terra e transformá-la em um jardim, rico em biodiversidade, sendo o ser humano um jardineiro, cuidador de todos e de tudo.
O primeiro relato da Criação (Gen 1,1-2,4a) mostra o ser humano profundamente ligado, interconectado, a todas as criaturas do universo. De uma forma poética, o relato bíblico insiste na fraternidade de fundo que existe entre todos os seres vivos que são uma beleza. Deus, ao criar, sempre se extasia diante de todas as criaturas e exclama: “Que beleza! Bom! Muito bom!” O poeta cantor e compositor das Comunidades Eclesiais de Base, José Vicente, capta muito bem a mística que envolve, permeia e perpassa todo o relato da Criação: “Olha a glória de Deus brilhando ...”, em todos e em tudo.
O segundo relato da Criação (Gen 2,4b-25) mostra o ser humano intimamente ligado com a terra e com as águas. “Não havia nenhuma vegetação, porque Javé Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo.” (Gen 2,5). Dois seres imprescindíveis e inter-dependentes para que o mundo se transforme em um paraíso com sociobiodiversidade: água e ser humano. A água, junto com a terra, é a mãe da vida. Sem ela, tudo morre. Assassinar uma nascente, poluir um rio, deve ser considerado pecado grave e crime hediondo. O ser humano é outro ser imprescindível, mas como cultivador, jamais como explorador e depredador.
“Um manancial brotava da terra” (Gen 2,6). Essa afirmação revela a íntima relação entre terra e água que é como “carne e unha”. Uma não pode existir sem a outra. A água é o sangue da terra: Gaia, grande ser vivo. “Javé Deus esculpiu o ser humano com a argila do solo.” (Gen 2,7). Além de ser mãe das águas, a terra, umedecida e fertilizada pela água, aparece também como mãe do ser humano. No princípio era a água e a terra; e a água e a terra se tornaram “carne”: criaturas todas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água e da terra. Somos mais. Somos água e terra que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria ... Deus cria a partir das águas e da terra. Só podemos ser cocriadores a partir das águas e da terra. Quem não defende, respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento para com as águas e a terra não pode ser criativo. Estará jogando no time dos assassinos da nossa mãe, irmã e nosso próprio ser: a água e a terra. Somos tão filhos/as das águas e da terra quanto somos filhos/as de Deus.
Segundo o relato bíblico de Gn 2,1-10.15 a terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um jardineiro. Para povos de regiões áridas, a primeira obra de Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica. Um dia, a falta da água gerou a seca e a fome em toda a região de Canaã. Os hebreus foram obrigados a migrar para o Egito (Gn 47). Lá se multiplicaram e foram oprimidos pelo império dos faraós (Ex 1). Os hebreus escravos gritaram a Deus e este veio libertá-los, conduzindo-os da escravidão para a terra da liberdade, passando pelo Mar Vermelho que se abriu em duas partes, deixando-os passar, em meio às águas, a pé enxuto (Ex 14). Fato semelhante aconteceu quando, mais tarde, conduzidos por Josué, os hebreus, já reunidos no mesmo povo israelita, atravessaram o rio Jordão, a pé enxuto, para entrar na posse da terra de Canaã (Js 3-4).


[1] Cf. Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ciência, edição de 25/10/2006.
[2] Cf. www.unisinos.br/_ihu/ - ipcc.ch/meet/meet.html - http://ipcc-ddc.cptec.inpe.br/ipccddcbr/html

[3] Cf. BOFF, Leonardo, Do iceberg à Arca de Noé, O nascimento de uma ética planetária, Rio de Janeiro, Ed. Garamond Ltda, 2002.
[4] Mateus 21,12-13; Marcos 11,15-19; Lucas 19,45-46 e João 2,13-17.
[5] Cf. FSP, 24/03/2006, p. A3.
[6] Cf. Gênesis 1,1-31, especialmente Gen 1,10.12.18.21.25.31.
[7] Estão na lista de seres a serem “dominados” peixes do mar, aves do céu, animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra. Somente esses! Não estão na lista os peixes dos rios, não todo tipo de ave, nem os animais selvagens. O texto explicita que a dominação seja sobre todas as feras e répteis.
[8] Cf. Gênesis 1,11.12 (duas vezes).21.24 (duas vezes).25(três vezes); Gen 6,19.20 (quatro vezes); Gen 7,3.14 (quatro vezes).

[1] Frei Carmelita, mestre em Exegese Bíblica, assessor da CPT, CEBs, CEBI, SAB e Via Campesina, em Minas Gerais; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.br