A necessidade de tratar um tema como o resgate do sagrado feminino revela uma negação histórica no tocante ao lugar da mulher na sociedade, sobretudo na esfera do religioso. As religiões são profundamente marcadas pelo selo do masculino possuidor do poder de decisão. A própria consideração de um Deus Pai todo poderoso, quando mal interpretada, pode legitimar uma cultura de opressão ao feminino.
Historicamente esse fato pode ser comprovado em todas as religiões. Essa constatação ressalta ainda mais a importância de tratarmos o tema do resgate do Sagrado feminino. É inquestionável a força da presença feminina nas religiões, mas por outro lado essa presença quantitativa não é reconhecida nos espaços decisórios do âmbito religioso. Vale lembrar aqui a mensagem do Papa para Jornada da Paz deste ano que denunciou a consideração insuficiente que se dá à condição feminina “nas concepções antropológicas que persistem em algumas culturas, que ainda destina à mulher um papel de grande submissão ao homem, com conseqüências que ofendem a dignidade de pessoa e impedem o exercício das liberdades fundamentais”.
Se pesquisarmos sobre o feminino primitivo e o divino veremos que as primeiras representações da divindade foram de mulheres. A deusa era a grande mãe capaz de gerar e sustentar a vida. Trata-se de um mistério fascinante, um mistério sagrado. De acordo com Erich Neumann em seu livro A grande mãe “a cultura primitiva é em grau bastante elevado um produto do grupo das mulheres”.[1] Seguindo numa perspectiva histórica notamos uma racionalização dos mistérios em que as mulheres vão perdendo sua semelhança com o sagrado. As religiões vão construindo um Deus masculino e perdendo o aspecto da deusa. Na Grécia e em Roma, por exemplo, as deusas eram presentes e cultuadas, mas aos poucos a associação com o feminino foi sendo esquecida.
Numa perspectiva bíblica a passagem mais significativa do Antigo Testamento sobre a mulher e sua condição (Gn 2-3) apresenta a mulher como auxiliar “igual ao homem, ossos dos seus ossos, carne de sua carne, da sua mesma espécie” ( Gn 2), e por isso o homem deixa seus pais para viver com ela. O relato demonstra a igualdade entre os dois sexos e a inferioridade da mulher é explicada em (Gn3,16) como uma degradação do estado primitivo e original da humanidade. Já no Novo Testamento a maneira como Jesus tratava as mulheres é reveladora (Mt, 13,13; Lc 15,8ss). Ele faz milagres a pedido das mulheres (Mt 8,14ss). Jesus quebrou preconceitos, conversou sem embaraço com a samaritana no poço de Jacó, o que para os discípulos pareceu contrário aos bons costumes (Jo 4,7ss.27). Nessa ótica o comportamento de Jesus pode ser visto como revolucionário. No gnosticismo há pergaminhos (Nag Hammadi) que se referem a Deus como Pai e Mãe afirmando o elemento feminino como divindade. O Jardin do Éden gnóstico aponta para uma inversão de valores. Eva é a mulher dotada de Espírito que instruída pela serpente traz a vida a Adão. Deus criador aparece com características humanas negativas, distante da concepção do Deus criador, sumo Bem. Ele amaldiçoa a mulher e a serpente.
Na visão do espiritismo, homem e mulher são iguais perante Deus. O Livro dos Espíritos tem um item com o título Igualdade dos direitos do homem e da mulher. Qualquer discriminação contra o feminino é fruto do domínio injusto imposto pelo homem à mulher. “Os espíritos encarnam como homem ou mulheres por que não tem sexo. ”[2] No islamismo temos o pedido de Maomé para que os homens sejam bons para com as mulheres.
Como podemos notar a imagem que se faz de Deus condiciona todo um contexto cultural e traz conseqüências para a vida social. Resgatar o sagrado feminino é resgatar a face materna de Deus que foi sendo escondida com o passar do tempo pela imposição de uma cultura masculinizada.
Pe. Carlos Alberto Chiquim
[1] A Grande Mãe, pág. 249.
[2] O Livro dos Espíritos. Pág. 105.