"Nosso Deus tem um plano, e este plano coincide com os melhores planos de todas as pessoas e de todos os povos: a vida, no tempo e mais além da morte, a paz da justiça, a liberdade na diversidade, a unidade da família humano-ecológica, num mundo sem primeiro nem terceiro, dentro da lei suprema do amor. Este plano é nosso plano". Texto-Base do 10o Intereclesial das CEBs - Comunidades Eclesiais de Base.
"Toda a criação geme e sofre em dores de parto" (Rm 8,22)
"Que todos tenham vida (e liberdade) em abundância". (Jo 10,10)
"Toda a criação geme e sofre em dores de parto" (Rm 8,22)
"Que todos tenham vida (e liberdade) em abundância". (Jo 10,10)
1. Introdução
Um camponês do município de Arinos, noroeste de Minas Gerais, me disse: "O mundo vai mal, porque as pessoas não seguem o Plano de Deus. Leis justas são as leis de Deus". Feliz a pessoa que segue a vontade do Deus da Vida, solidário e libertador. Mas, como descobrir o que é vontade de Deus?
Plano é plano e Deus é Deus. Plano é projeto e convida à participação; não é algo acabado, é processual, está em construção e demanda corresponsabilidade. Queremos falar sobre Plano de Deus, não plano dos Talibãs e muito menos plano de Talibush. Infelizmente, em nome de Deus, verdadeiros genocídios, massacres e atrocidades têm sido feitos ao longo dos séculos e na atualidade.
Quem é Deus? A resposta a esta pergunta exige resposta à outra, existencial: Quem somos nós? Não podemos reduzir Deus a uma projeção humana. O grande filósofo Feuerbach já denunciou os riscos de confundirmos Deus com projeções humanas.
No passado e no presente, muitas imagens de Deus serviram e servem para meter medo nas pessoas, paralisá-las, mantê-las na infantilidade. Precisamos desconstruir imagens de Deus e reconstruir outras imagens mais libertadoras. O Deus verdadeiro abomina toda e qualquer idolatria, seja ela do mercado, do capital, da tecnologia ou do devocionismo. Nosso Deus nunca foi vingativo, não pune, não mete medo, não é "onipotente" (ou todo- poderoso). Nosso Deus é Amor, 1000% amor, só misericórdia (1Jo 4,8).
2. Partindo da nossa realidade
A estrutura de violência e de exclusão nos fragmenta e está nos deixando em cacos. É hora de recompor os cacos em um grande e articulado mosaico; é hora de reintegrar as nossas forças e as energias vitais.
Vivemos um tempo perigoso. Tempo de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação, de moralismo, de religiões sem Deus, de salvação sem escatologia, de cristianismo light, de libertações que não vão muito além da autoestima.
Clamores ensurdecedores brotam dos porões da humanidade. A mãe Terra clama para ser salva. Medo, insegurança e instabilidade atingem a todos.
Estamos vivendo uma revolução profunda: a da era da cibernética, da robótica, da internet. Na história da humanidade já atravessamos diversas revoluções profundas, tais como a revolução da agricultura, na época do neolítico e a revolução industrial, na época moderna. As revoluções profundas trazem mudanças substanciais na forma de encarar o mundo, nas relações e na estruturação da vida social, política, econômica, cultural e religiosa.
As colunas mestras que sustentavam a sociedade moderna estão em crise profunda:
a família não consegue ser mais aquela família de 30 ou 40 anos atrás, em que o pai patriarcal reinava e mulher e filhos obedeciam;
o Estado não consegue, melhor dizendo, não interessa a ele ser instrumento da realização do bem comum;
a escola não está conseguindo formar para humanidade;
a religião e as igrejas estão, também, em crise.
Estamos numa travessia. João Guimarães Rosa termina Grande Sertão Veredas dizendo que o que importa é a travessia. Vivemos tempos de desconstrução e de reconstrução. Construções antigas não respondem mais aos apelos hodiernos. Como fazia o profeta Jeremias, primeiro precisamos destruir e arrancar para depois construir e plantar (Jr 1,4-10). Ou como filosofava Nietzsche: primeiro, temos que quebrar todos os ídolos para deixar irromper no humano o Deus verdadeiro e libertador.
3. Olhando no retrovisor que é a Bíblia
Para entender o Plano do Deus da vida, é salutar olhar no "retrovisor" que a Bíblia representa, e especificamente, voltar nossos olhos com benevolência para o ensinamento e testemunho de Jesus de Nazaré, pois Ele nos ajuda a conhecer melhor Deus, nosso Pai e Mãe de infinito amor.
Para Jesus, e para o cristianismo, o Deus verdadeiro está no outro, preferencialmente. Está em cada um/a de nós, mas está, por excelência, no outro a partir do outro que sofre. Deus não pede nada para si, não quer ser objeto do nosso amor. Deus é sujeito de amor. A quem diz a Deus: "Quero te amar!", Ele responde: "Ficarei muito feliz se você amar o seu próximo, o outro, seu irmão". "Não se preocupe comigo; ame meus filhos e filhas que são todas as criaturas", poderia continuar Deus dizendo.
O programa de Jesus apresentado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18-21) compõe-se de um plano de libertação integral, que inclui libertação política (libertação dos presos), social e econômica (evangelização dos pobres), ideológica (restituição da visão) e religiosa/espiritual (proclamação do Ano de Graça do Senhor). Assim Jesus apresenta o Plano de Deus: libertação integral para todos e tudo.
O Plano de Deus é que não existam empobrecidos na sociedade (Dt 15,4) e que não existam excluídos, mas que todos sejam incluídos como cidadãos/as.
Exemplos:
Fazer memória do Ano do Jubileu e do Ano Sabático geram esperança, acorda potencialidades adormecidas;
a palavra "quilombo", pronunciada ou ouvida, tem o poder de nos recordar a capacidade de resistência do povo negro e de renovar nossas energias.
O Plano de Deus defende uma comunhão holística (total) - material e de participação na mesma mesa da vida. Nosso Deus, solidário e libertador, não quer somente fraternidade espiritual ou de amizade, mas também fraternidade econômica, política e cultural. Não agradam ao Espírito de Deus pessoas que se encontram para a eucaristia aos domingos, mas que durante a semana são umas opressoras das outras. O evangelista Lucas quer "estourar" as oposições de classes. Se ricos e pobres, judeus e não judeus, homens e mulheres, trabalhadores e patrões comem em lugares diferentes, moram em casas de qualidades diferentes, o cristianismo terá um conteúdo diferente para cada grupo e não haverá realmente comunhão. É ilusória a comunidade na qual uns se banqueteiam e outros passam fome, uns têm casas próprias e outros amargam aluguéis caríssimos, uns ganham demais e outros ganham quase nada, uns vivem no luxo e outros sobrevivem do/no lixo; uns detêm o poder[2] e outros são subjugados.
O teólogo da libertação, Leonardo Boff, nos ajuda a superar certas concepções reducionistas que empobrecem o nosso viver. Quanto mais alargamos nosso modo de entender a vida, a realidade que somos e que nos envolve, melhor a qualidade de vida. O plano de Deus é que vivamos como uma verdadeira Comunidade de Vida. Não dá para continuarmos pensando que existe o meio ambiente, a ecologia e nós os humanos, como se fôssemos superiores ao resto da criação. Basta de antropocentrismo. É hora de percebermos que fazemos parte de uma grande Comunidade de Vida, composta por todos os seres minerais, animais, vegetais e humanos. Somos todos filhos e filhas do mesmo forno. Todos e tudo estão conectados numa relação de inter-retroprojeção. Tudo o que acontece com os demais membros desta Comunidade de Vida acontecerá conosco, mais cedo ou mais tarde.
Temos vocação para o infinito, somos herdeiros do céu e da terra. Nosso Deus é o Deus que no processo evolutivo cria todas as formas de Vida. Jesus veio para que todos tenham "vida e vida em abundância" (Jo 10,10). A fé no Deus solidário e libertador, na força escondida nos pequenos e a esperança de que construir um outro mundo é possível, necessário e urgente, nos dá força para caminhar. É Deus quem nos anima: "Segure os soluços e enxugue as lágrimas, porque há uma esperança para a sua dor... existe uma esperança de futuro" (Jer 31,16-17).
Quem se sente participante ativo do Plano de Deus é entusiasmado. Entusiasmar-se é muito mais do que sentir Deus dentro de si; é cultivar a convicção de que vivemos dentro de um Deus compassivo-misericordioso e libertador, um Deus cujo sangue ferve de indignação com toda e qualquer injustiça, contra qualquer criatura, em qualquer parte do universo. Vivemos inundados por Deus. Ele nos envolve, permeia toda a nossa existência, perpassa-nos. Poderíamos dizer que "nós somos os peixes e Deus é o mar": uma imensidão de gratuidade e de presença amorosa libertadora. "Em Deus vivemos, nos movemos e existimos" (At 17,28). Deus é sempre mais e sempre maior.
O Artista maior das nossas vidas não é "onipotente", porque não age como ditador impondo a sua vontade. Deus não é padrasto; não é paternalista; não é assistencialista. Deus não atropela as nossas liberdades. Por isso não impõe nada, mas se limita a propor ternamente. Podemos dizer sim ou não ao seu projeto libertador e humanizador e temos que assumir as consequências. Por ser amor, Deus é eminentemente "frágil", pois nos deixa livres, respeita o nosso direito de ser diferente, muitas vezes tem "uma paciência danada" conosco, e sabe que mais cedo ou mais tarde daremos a nossa adesão ao seu projeto de amor e de libertação que se realiza em tempos de exclusão. A ação de Deus é como fogo no capim seco ou como água morro abaixo: ninguém segura.
Deus respeita o princípio de subsidiariedade, ou seja, o maior não faça o que o menor pode e deve fazer. Deus não intervém no que pode e deve ser feito pela humanidade. Deus é santo, ou seja, é o totalmente Outro. Nós somos criaturas cocriadoras. Incomoda a muita gente o fato de Deus parecer estar de braços cruzados na arquibancada da vida, enquanto 2/3 da humanidade é crucificada. Uma pessoa incomodada com o sofrimento dos inocentes questionou um sábio indiano: "Deus não faz nada para salvar os inocentes da cruz?" O sábio respondeu: "Fez você!"
4. O Plano de Deus passa pelo resgate da Teologia da Criação
Para contribuirmos com o plano de Deus precisamos resgatar a Teologia da Criação. Basta de considerar o pecado original como ponto de partida para pensar e organizar a vida. A Criação é o ato primeiro. A partir da Teologia da Criação podemos reinterpretar o episódio do pecado original em chave filosófico-antropológica, que nos leva à seguinte reflexão: o mito do pecado original fala do processo de maturação pelo qual todos nós somos convidados/as a passar. Aquele "deus" que proibiu os seres humanos comer do fruto da árvore do conhecimento queria que os humanos se mantivessem sempre na fase infantil, sempre submissos e dependentes para que ele pudesse ser onipotente, todo-poderoso. Mas a mulher (Eva) se rebelou contra a idéia de ficar sempre infantil e dependente, quis crescer, ganhar autonomia. Vemos então que em Gn 2,4b-3,24 há um mito sobre o amadurecimento humano. Enterremos a idéia de pensar teologicamente a partir do pecado (origin al). Este é ato segundo que induz ao pessimismo e a complexo de culpa. Façamos Teologia a partir do ato primeiro que é a Criação, fruto bom e gratuito do infinito amor que Deus tem por nós.
5. A Física Quântica inspira um novo Plano de Deus
A nova Física Quântica, na esteira da teoria da relatividade, "princípio da indeterminação[3]", nos faz repensar o Plano de Deus, a vida e a nossa organização. O estudo das partículas subatômicas tem mostrado que não existem elementos fundamentais isolados, mas uma rede extremamente complexa de relações e interconexões, não constituindo as partículas objetos ou coisas independentes, mas um conjunto de conexões. Deparamo-nos com feixes de energia, não com substâncias materiais, como pensava a Física clássica. Não existe dualismo entre matéria e energia. Matéria é energia condensada e energia é matéria "volatilizada". A matéria, colocada sob altíssima velocidade, se transforma em energia e esta, sob baixa velocidade, se transforma em matéria. Assim matéria e energia se relacionam não mais em termos de oposição e confronto, mas em termos de complementariedade, de cooperação.
O ser humano passa a ser visto como um sistema complexo de relações e conexões, em intimidade com o todo que é a família humano-ecológica. Emerge, assim, uma imagem do ser humano integrado, que articula em equilíbrio dinâmico, o racional e o intuitivo, a auto-afirmação e a cooperação, o yin e o yang, o masculino e o feminino. Nessa visão do ser humano, o que predomina é a complementação e não mais a oposição ou a luta.[4]
Uma visão integrada do ser humano é própria do mundo cultural judaico-semita. No mundo bíblico o ser humano é visto como uma unidade. Os termos bíblicos utilizados, seja em hebraico (nefesh, basar, lebeb, etc.), seja em grego (psyché, pnêuma, soma, kardia, etc.) designam aspectos do ser humano e referem-se ao homem ou à mulher vistos sempre como uma unidade.
O Plano de Deus nos inspira a superarmos a noção de ser humano como mero consumidor, como um competidor, um egocêntrico por excelência. Basta de dualismos, trilismos ou esquartelismos.
Com Jesus, "o véu do templo se rasga" (Lc 23,45) e "ninguém deve chamar de impuro aquilo que Deus criou" (At 10,15). Não há mais separação entre puro e impuro, entre santo e pecador, entre transcendência e imanência, entre sagrado e profano, entre, céu e terra, entre c corpo e espírito, entre divino e humano, entre dentro e fora, etc. Tudo e todos são banhados pela dimensão divina e transcendente da vida. Em cada um/a de nós estão o feminino e o masculino, o bem e o mal, o sagrado e o profano, o divino e humano, tudo unido como carne e unha.
JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai, paizinho (abbáh, em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus comprometido com a humanidade a partir dos pobres é um Deus transdescendente, não apenas transcendente - sua transcendência se esconde na imanência. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los (Ex 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito desce e "paira" sobre as águas (= está em todos e em tudo). Em Jesus de Nazaré, Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana, tendo "nascido de mulher" (Gl 4,4). No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definit ivamente. Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Esta característica se reflete em Jesus.
Por sua prática e por seus ensinamentos, com audácia, Jesus de Nazaré propõe uma revisão do núcleo da Religião:
Deus não mais está fora, nem acima, nem distante; nem é "onipotente". O Deus de Jesus coparticipa dos processos de libertação;
Os meios tradicionais de relacionamento com Deus - oração, jejum e esmola - se relativizam;
O jeito de viver a Religião se desierarquiza. Jesus faz uma "revolução copernicana" ao revelar que Deus dentro da Pessoa Humana, da História e das Relações;
Aponta para a Comunhão de tudo com todos, da qual devemos participar, tomar parte como membros de uma teia da vida com vocação para o infinito.
O Plano de Deus se manifesta no Decálogo (Ex 20,1-17), que não deve ser reduzido aos dez mandamentos. Primeiro: não são mandamentos, no sentido de ordens; são princípios inspiradores para ajudar a reconstruir a sociedade a partir de novos valores. Segundo: o decálogo não é endereçado a pessoas individualizadas, mas a todo o povo. É a sociedade que não deve matar, que deve se organizar para preservar e valorizar a vida. É a sociedade que não pode ser idólatra, etc. Tremendamente eloqüente é que o coração do decálogo é Não Matarás! Dito de forma positiva: Faça viver todos e tudo! Eis o coração do plano de Deus: vida e liberdade para todos e para tudo. Este caminho é santo e bom. Caminhai por ele. Mãos à obra.
Um camponês do município de Arinos, noroeste de Minas Gerais, me disse: "O mundo vai mal, porque as pessoas não seguem o Plano de Deus. Leis justas são as leis de Deus". Feliz a pessoa que segue a vontade do Deus da Vida, solidário e libertador. Mas, como descobrir o que é vontade de Deus?
Plano é plano e Deus é Deus. Plano é projeto e convida à participação; não é algo acabado, é processual, está em construção e demanda corresponsabilidade. Queremos falar sobre Plano de Deus, não plano dos Talibãs e muito menos plano de Talibush. Infelizmente, em nome de Deus, verdadeiros genocídios, massacres e atrocidades têm sido feitos ao longo dos séculos e na atualidade.
Quem é Deus? A resposta a esta pergunta exige resposta à outra, existencial: Quem somos nós? Não podemos reduzir Deus a uma projeção humana. O grande filósofo Feuerbach já denunciou os riscos de confundirmos Deus com projeções humanas.
No passado e no presente, muitas imagens de Deus serviram e servem para meter medo nas pessoas, paralisá-las, mantê-las na infantilidade. Precisamos desconstruir imagens de Deus e reconstruir outras imagens mais libertadoras. O Deus verdadeiro abomina toda e qualquer idolatria, seja ela do mercado, do capital, da tecnologia ou do devocionismo. Nosso Deus nunca foi vingativo, não pune, não mete medo, não é "onipotente" (ou todo- poderoso). Nosso Deus é Amor, 1000% amor, só misericórdia (1Jo 4,8).
2. Partindo da nossa realidade
A estrutura de violência e de exclusão nos fragmenta e está nos deixando em cacos. É hora de recompor os cacos em um grande e articulado mosaico; é hora de reintegrar as nossas forças e as energias vitais.
Vivemos um tempo perigoso. Tempo de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação, de moralismo, de religiões sem Deus, de salvação sem escatologia, de cristianismo light, de libertações que não vão muito além da autoestima.
Clamores ensurdecedores brotam dos porões da humanidade. A mãe Terra clama para ser salva. Medo, insegurança e instabilidade atingem a todos.
Estamos vivendo uma revolução profunda: a da era da cibernética, da robótica, da internet. Na história da humanidade já atravessamos diversas revoluções profundas, tais como a revolução da agricultura, na época do neolítico e a revolução industrial, na época moderna. As revoluções profundas trazem mudanças substanciais na forma de encarar o mundo, nas relações e na estruturação da vida social, política, econômica, cultural e religiosa.
As colunas mestras que sustentavam a sociedade moderna estão em crise profunda:
a família não consegue ser mais aquela família de 30 ou 40 anos atrás, em que o pai patriarcal reinava e mulher e filhos obedeciam;
o Estado não consegue, melhor dizendo, não interessa a ele ser instrumento da realização do bem comum;
a escola não está conseguindo formar para humanidade;
a religião e as igrejas estão, também, em crise.
Estamos numa travessia. João Guimarães Rosa termina Grande Sertão Veredas dizendo que o que importa é a travessia. Vivemos tempos de desconstrução e de reconstrução. Construções antigas não respondem mais aos apelos hodiernos. Como fazia o profeta Jeremias, primeiro precisamos destruir e arrancar para depois construir e plantar (Jr 1,4-10). Ou como filosofava Nietzsche: primeiro, temos que quebrar todos os ídolos para deixar irromper no humano o Deus verdadeiro e libertador.
3. Olhando no retrovisor que é a Bíblia
Para entender o Plano do Deus da vida, é salutar olhar no "retrovisor" que a Bíblia representa, e especificamente, voltar nossos olhos com benevolência para o ensinamento e testemunho de Jesus de Nazaré, pois Ele nos ajuda a conhecer melhor Deus, nosso Pai e Mãe de infinito amor.
Para Jesus, e para o cristianismo, o Deus verdadeiro está no outro, preferencialmente. Está em cada um/a de nós, mas está, por excelência, no outro a partir do outro que sofre. Deus não pede nada para si, não quer ser objeto do nosso amor. Deus é sujeito de amor. A quem diz a Deus: "Quero te amar!", Ele responde: "Ficarei muito feliz se você amar o seu próximo, o outro, seu irmão". "Não se preocupe comigo; ame meus filhos e filhas que são todas as criaturas", poderia continuar Deus dizendo.
O programa de Jesus apresentado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18-21) compõe-se de um plano de libertação integral, que inclui libertação política (libertação dos presos), social e econômica (evangelização dos pobres), ideológica (restituição da visão) e religiosa/espiritual (proclamação do Ano de Graça do Senhor). Assim Jesus apresenta o Plano de Deus: libertação integral para todos e tudo.
O Plano de Deus é que não existam empobrecidos na sociedade (Dt 15,4) e que não existam excluídos, mas que todos sejam incluídos como cidadãos/as.
Exemplos:
Fazer memória do Ano do Jubileu e do Ano Sabático geram esperança, acorda potencialidades adormecidas;
a palavra "quilombo", pronunciada ou ouvida, tem o poder de nos recordar a capacidade de resistência do povo negro e de renovar nossas energias.
O Plano de Deus defende uma comunhão holística (total) - material e de participação na mesma mesa da vida. Nosso Deus, solidário e libertador, não quer somente fraternidade espiritual ou de amizade, mas também fraternidade econômica, política e cultural. Não agradam ao Espírito de Deus pessoas que se encontram para a eucaristia aos domingos, mas que durante a semana são umas opressoras das outras. O evangelista Lucas quer "estourar" as oposições de classes. Se ricos e pobres, judeus e não judeus, homens e mulheres, trabalhadores e patrões comem em lugares diferentes, moram em casas de qualidades diferentes, o cristianismo terá um conteúdo diferente para cada grupo e não haverá realmente comunhão. É ilusória a comunidade na qual uns se banqueteiam e outros passam fome, uns têm casas próprias e outros amargam aluguéis caríssimos, uns ganham demais e outros ganham quase nada, uns vivem no luxo e outros sobrevivem do/no lixo; uns detêm o poder[2] e outros são subjugados.
O teólogo da libertação, Leonardo Boff, nos ajuda a superar certas concepções reducionistas que empobrecem o nosso viver. Quanto mais alargamos nosso modo de entender a vida, a realidade que somos e que nos envolve, melhor a qualidade de vida. O plano de Deus é que vivamos como uma verdadeira Comunidade de Vida. Não dá para continuarmos pensando que existe o meio ambiente, a ecologia e nós os humanos, como se fôssemos superiores ao resto da criação. Basta de antropocentrismo. É hora de percebermos que fazemos parte de uma grande Comunidade de Vida, composta por todos os seres minerais, animais, vegetais e humanos. Somos todos filhos e filhas do mesmo forno. Todos e tudo estão conectados numa relação de inter-retroprojeção. Tudo o que acontece com os demais membros desta Comunidade de Vida acontecerá conosco, mais cedo ou mais tarde.
Temos vocação para o infinito, somos herdeiros do céu e da terra. Nosso Deus é o Deus que no processo evolutivo cria todas as formas de Vida. Jesus veio para que todos tenham "vida e vida em abundância" (Jo 10,10). A fé no Deus solidário e libertador, na força escondida nos pequenos e a esperança de que construir um outro mundo é possível, necessário e urgente, nos dá força para caminhar. É Deus quem nos anima: "Segure os soluços e enxugue as lágrimas, porque há uma esperança para a sua dor... existe uma esperança de futuro" (Jer 31,16-17).
Quem se sente participante ativo do Plano de Deus é entusiasmado. Entusiasmar-se é muito mais do que sentir Deus dentro de si; é cultivar a convicção de que vivemos dentro de um Deus compassivo-misericordioso e libertador, um Deus cujo sangue ferve de indignação com toda e qualquer injustiça, contra qualquer criatura, em qualquer parte do universo. Vivemos inundados por Deus. Ele nos envolve, permeia toda a nossa existência, perpassa-nos. Poderíamos dizer que "nós somos os peixes e Deus é o mar": uma imensidão de gratuidade e de presença amorosa libertadora. "Em Deus vivemos, nos movemos e existimos" (At 17,28). Deus é sempre mais e sempre maior.
O Artista maior das nossas vidas não é "onipotente", porque não age como ditador impondo a sua vontade. Deus não é padrasto; não é paternalista; não é assistencialista. Deus não atropela as nossas liberdades. Por isso não impõe nada, mas se limita a propor ternamente. Podemos dizer sim ou não ao seu projeto libertador e humanizador e temos que assumir as consequências. Por ser amor, Deus é eminentemente "frágil", pois nos deixa livres, respeita o nosso direito de ser diferente, muitas vezes tem "uma paciência danada" conosco, e sabe que mais cedo ou mais tarde daremos a nossa adesão ao seu projeto de amor e de libertação que se realiza em tempos de exclusão. A ação de Deus é como fogo no capim seco ou como água morro abaixo: ninguém segura.
Deus respeita o princípio de subsidiariedade, ou seja, o maior não faça o que o menor pode e deve fazer. Deus não intervém no que pode e deve ser feito pela humanidade. Deus é santo, ou seja, é o totalmente Outro. Nós somos criaturas cocriadoras. Incomoda a muita gente o fato de Deus parecer estar de braços cruzados na arquibancada da vida, enquanto 2/3 da humanidade é crucificada. Uma pessoa incomodada com o sofrimento dos inocentes questionou um sábio indiano: "Deus não faz nada para salvar os inocentes da cruz?" O sábio respondeu: "Fez você!"
4. O Plano de Deus passa pelo resgate da Teologia da Criação
Para contribuirmos com o plano de Deus precisamos resgatar a Teologia da Criação. Basta de considerar o pecado original como ponto de partida para pensar e organizar a vida. A Criação é o ato primeiro. A partir da Teologia da Criação podemos reinterpretar o episódio do pecado original em chave filosófico-antropológica, que nos leva à seguinte reflexão: o mito do pecado original fala do processo de maturação pelo qual todos nós somos convidados/as a passar. Aquele "deus" que proibiu os seres humanos comer do fruto da árvore do conhecimento queria que os humanos se mantivessem sempre na fase infantil, sempre submissos e dependentes para que ele pudesse ser onipotente, todo-poderoso. Mas a mulher (Eva) se rebelou contra a idéia de ficar sempre infantil e dependente, quis crescer, ganhar autonomia. Vemos então que em Gn 2,4b-3,24 há um mito sobre o amadurecimento humano. Enterremos a idéia de pensar teologicamente a partir do pecado (origin al). Este é ato segundo que induz ao pessimismo e a complexo de culpa. Façamos Teologia a partir do ato primeiro que é a Criação, fruto bom e gratuito do infinito amor que Deus tem por nós.
5. A Física Quântica inspira um novo Plano de Deus
A nova Física Quântica, na esteira da teoria da relatividade, "princípio da indeterminação[3]", nos faz repensar o Plano de Deus, a vida e a nossa organização. O estudo das partículas subatômicas tem mostrado que não existem elementos fundamentais isolados, mas uma rede extremamente complexa de relações e interconexões, não constituindo as partículas objetos ou coisas independentes, mas um conjunto de conexões. Deparamo-nos com feixes de energia, não com substâncias materiais, como pensava a Física clássica. Não existe dualismo entre matéria e energia. Matéria é energia condensada e energia é matéria "volatilizada". A matéria, colocada sob altíssima velocidade, se transforma em energia e esta, sob baixa velocidade, se transforma em matéria. Assim matéria e energia se relacionam não mais em termos de oposição e confronto, mas em termos de complementariedade, de cooperação.
O ser humano passa a ser visto como um sistema complexo de relações e conexões, em intimidade com o todo que é a família humano-ecológica. Emerge, assim, uma imagem do ser humano integrado, que articula em equilíbrio dinâmico, o racional e o intuitivo, a auto-afirmação e a cooperação, o yin e o yang, o masculino e o feminino. Nessa visão do ser humano, o que predomina é a complementação e não mais a oposição ou a luta.[4]
Uma visão integrada do ser humano é própria do mundo cultural judaico-semita. No mundo bíblico o ser humano é visto como uma unidade. Os termos bíblicos utilizados, seja em hebraico (nefesh, basar, lebeb, etc.), seja em grego (psyché, pnêuma, soma, kardia, etc.) designam aspectos do ser humano e referem-se ao homem ou à mulher vistos sempre como uma unidade.
O Plano de Deus nos inspira a superarmos a noção de ser humano como mero consumidor, como um competidor, um egocêntrico por excelência. Basta de dualismos, trilismos ou esquartelismos.
Com Jesus, "o véu do templo se rasga" (Lc 23,45) e "ninguém deve chamar de impuro aquilo que Deus criou" (At 10,15). Não há mais separação entre puro e impuro, entre santo e pecador, entre transcendência e imanência, entre sagrado e profano, entre, céu e terra, entre c corpo e espírito, entre divino e humano, entre dentro e fora, etc. Tudo e todos são banhados pela dimensão divina e transcendente da vida. Em cada um/a de nós estão o feminino e o masculino, o bem e o mal, o sagrado e o profano, o divino e humano, tudo unido como carne e unha.
JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai, paizinho (abbáh, em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus comprometido com a humanidade a partir dos pobres é um Deus transdescendente, não apenas transcendente - sua transcendência se esconde na imanência. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los (Ex 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito desce e "paira" sobre as águas (= está em todos e em tudo). Em Jesus de Nazaré, Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana, tendo "nascido de mulher" (Gl 4,4). No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definit ivamente. Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Esta característica se reflete em Jesus.
Por sua prática e por seus ensinamentos, com audácia, Jesus de Nazaré propõe uma revisão do núcleo da Religião:
Deus não mais está fora, nem acima, nem distante; nem é "onipotente". O Deus de Jesus coparticipa dos processos de libertação;
Os meios tradicionais de relacionamento com Deus - oração, jejum e esmola - se relativizam;
O jeito de viver a Religião se desierarquiza. Jesus faz uma "revolução copernicana" ao revelar que Deus dentro da Pessoa Humana, da História e das Relações;
Aponta para a Comunhão de tudo com todos, da qual devemos participar, tomar parte como membros de uma teia da vida com vocação para o infinito.
O Plano de Deus se manifesta no Decálogo (Ex 20,1-17), que não deve ser reduzido aos dez mandamentos. Primeiro: não são mandamentos, no sentido de ordens; são princípios inspiradores para ajudar a reconstruir a sociedade a partir de novos valores. Segundo: o decálogo não é endereçado a pessoas individualizadas, mas a todo o povo. É a sociedade que não deve matar, que deve se organizar para preservar e valorizar a vida. É a sociedade que não pode ser idólatra, etc. Tremendamente eloqüente é que o coração do decálogo é Não Matarás! Dito de forma positiva: Faça viver todos e tudo! Eis o coração do plano de Deus: vida e liberdade para todos e para tudo. Este caminho é santo e bom. Caminhai por ele. Mãos à obra.