Pe. Alfredo J. Goançalves, CS
Toda crise é marcada pela ambigüidade. Traz dor e sofrimento, mas pode abrir portas inesperadas. Como o bisturi do cirurgião, corta e sangra o tumor, mas para curar. Isso vale para as crises pessoais, familiares ou comunitários, porém vale igualmente para as turbulências de ordem social, política, econômica e cultural. A crise, como as drogas da farmácia, é veneno e remédio a um só tempo.
A economia mundial globalizada assenta-se sobre um tripé que não podia ter vida longa. De início, a primazia e liberdade conferidas ao capital financeiro – especulativo, volátil, virtual, andorinha – ajudou a criar o que hoje chamamos de "cassino mundial". Este, mesmo girando numa órbita própria, acima dos problemas e esperanças terrestres, tem os pés na economia real. Ao jogar com as ações do mercado futuro, faz oscilar o preço das matérias-primas, do trabalho humano e dos produtos em circulação. A bolha estoura e vem abaixo todo o edifício da confiança no mercado.
Em segundo lugar, até mesmo o capital aplicado na produção costuma operar com olhos míopes. Gera simultaneamente extrema concentração de renda e riqueza, ao lado de extrema exclusão social. Tais assimetrias e desequilíbrios, que hoje mantêm na miséria, na subnutrição ou na fome mais de 900 milhões de pessoas, segundo a FAO, não podem se perpetuar eternamente. As comunicações ao vivo e instantâneas têm a vantagem de expor à lua do dia as desigualdades mais aberrantes, que antes estavam mantinham-se distantes e escondidas. Hoje a fome bate à porta do luxo e este não pode fechar todas as portas e janelas àquela. Cresce desconfiança de que algo está errado!
Por fim, o ritmo desencadeado pela ciência aplicada e pela tecnologia de ponta, especialmente a partir da Revolução Industrial e agora da Revolução Informática, impõe o crescimento a qualquer preço.. Instala-se, com isso, o círculo vicioso do produtivismo- consumismo, que não conhece o hábito saudável de medir suas conseqüências, sobre a humanidade, sobre o meio ambiente e sobre o planeta Terra. A lógica matemática e calculadora da razão instrumental desenvolveu uma forma de exploração, até a última gota de sangue, seja dos recursos naturais, seja da força de trabalho humano, seja do patrimônio cultural acumulado. O resultado está à vista de todos: devastação, desertificação, contaminação do ar e das águas, uso injusto e incorreto dos bens naturais, aquecimento global, entre tantos outros sintomas de um planeta enfermo. Diante de tal diagnóstico, qual a receita imediata? Investir cada vez mais! Como se para todos os problemas, a solução fosse mais crescimento. Um remédio que pode matar o paciente!
Os cientistas e os movimentos sociais não se cansam de alertar sobre o risco que corre a biodiversidade – vidas humana, vegetal e animal – sobre a face da terra. Várias espécies da fauna e da flora já fazem parte de um passado cada vez mais remoto, enquanto outras lutam desesperadamente para reproduzir-se. Felizmente, entre os seres humanos, vem crescendo a consciência de que ou salvamos o bio-sistema do globo, ou perecemos junto com ele. Essa consciência tem um lado social muito evidente, pois em casos de "catástrofes naturais" são os pobres os primeiros a morrer. Os ricos buscam aprimorar suas defesas. As aspas acima se devem ao fato que tais catástrofes cada vez têm menos de natural, sendo mais do que tudo reações violentas da natureza a uma ação igualmente violenta que sobre ela exerce o modelo de civilização vigente.
É aqui que entra a ambigüidade da crise. Ela perturba, transtorna, gera angústia, mas pode ajudar-nos a refletir de modo mais sério e profundo sobre esse modelo civilizatório. Ela ajuda a levantar perguntas habitualmente ocultas. Ela põe em cima da mesa os temas que insistimos em deixar nos porões ou debaixo do tapete. Ela nos leva a um confronto com o espelho de nossa existência.
Vejamos isso em algumas perguntas incômodas. Quantos pares de sapatos têm nos armários abarrotados determinadas celebridades da socialite? E quantos modelos de roupa e casacos para o dia, para a noite, para as festas, etc.? Quantos carros de luxo, praticamente ociosos, ocupam as garagens de imensas mansões? Quantos iates, helicópteros, aviões particulares, automóveis exóticos encontram-se em movimento pelo ar, pelo chão e pela água? Quantos milhões de dólares se gastam em certas cerimônias de casamento e tantas outras ocasiões da alta e média sociedade? Quanta água potável se joga sobre automóveis, calçadas, piscinas e em outros atos impensáveis? Quantos alimentos são produzidos com o uso de agrotóxicos e, por outro lado, quantos são desperdiçados às toneladas? Quantos animais e plantas continuam sendo comercializados indiscriminadamente ? Quanto dinheiro do petróleo, ou de outras origens, alimenta projetos tão grandiosos e mirabolantes quanto inúteis? Mais perto de nós, quantas vezes compramos produtos que se convertem em lixo antes mesmo de serem desempacotados? Pelos cantos da casa, quantos objetos que jamais utilizamos? Apesar da revolução informática, quando papel se usa mal e joga fora? Quantas necessidades supérfluas criam em nós a propaganda e a publicidade, cuidadosamente assessoradas pelos especialistas do marketing? Isto para não falar das contas bancárias, da bolsa de valores, do acúmulo de terras, do comércio das obras de arte, das jóias, e assim por diante.
Perguntas como essas poderiam estender-se numa lista sem fim. O racionalismo iluminista, pressionado pela velocidade das máquinas, criou uma civilização irracional e insustentável, seja do ponto de vista ecológico, seja do ponto de vista social e político. Por isso é que a crise financeira instalada há alguns meses, se de um lado mexe com todos os povos e pessoas do planeta, trazendo o temos de recessão, de inflação e de outras conseqüências mais caseiras, de outro lado, obriga a todos a repensar o rumo da nave chama Terra. Entre os últimos inventos tecnológicos, por uma parte, e o consumismo exacerbado e insaciável, por outra, forjou-se uma cumplicidade recorrente, espécie de roda viva gigante chamada progresso que tudo devasta e tudo devora. O lucro e a acumulação do capital é o mecanismo que faz girar a roda.
Evidenciam-se hoje, com toda a clareza, os limites, contradições e esgotamentos desse tipo de progresso alucinado. Chega-se, inclusive, a confundir desenvolvimento com simples crescimento, e inversamente, subdesenvolvimento com incapacidade de crescer. Entre ambos os pólos, instalou-se a idéia perniciosa de que todos os povos podiam e deviam alcançar o nível de desenvolvimento dos países ricos. Idéia que foi alimentada tanto à direita quanto à esquerda, ou seja, tanto pelos partidários de Adam Smidt e Ricardo, quanto pelos partidários de Karl Marx e Engels militantes, ainda que as motivações fossem distintas. De qualquer modo, de ambos os lados, Estados Unidos e Ex-União Soviética, economia de mercado ou socialismo, a ratoeira do produtivismo- consumismo dominou os modelos da política e da economia.
A crise nos ajuda a perceber que o padrão de vida dos países centrais, se e quando estendido a todos os habitantes do planeta, torna a vida neste absolutamente insustentável. O estilo de vida dos países ricos tem como preço a pobreza e a violência no resto do mundo. Um é a contraface do outro. O luxo de uns poucos leva milhões de pessoas a disputar o lixo com os abutres, os cães, os ratos e as baratas. O apartheid social, atualmente, não apenas divide o planeta em Primeiro Mundo e Terceiro Mundo. Ele cria, num caso, ilhas de riqueza em meio a um gigantesco oceano de miséria (Índia, Brasil, China, México); no outro, bolsões de miséria e droga em meio a uma sociedade de ampla classe média (Estados Unidos, Europa, Japão, Austrália). Ou seja, a fronteira entre a riqueza e a pobreza, hoje em dia, passa por dentro de cada país. Ela se materializa em muros cada vez mais altos, em cercas eletrificadas, em cães de guarda e em uma série de outros sistemas de segurança, onde ninguém se sente seguro.
Quem está do lado de dentro dos muros, visíveis ou invisíveis, vive como refém de seus jovens e adolescentes, muitas vezes acionando a polícia para ceifar-lhes a vida antes dos 25 anos. Quem está do lado de fora, em muitos casos não conhece lei nem limite. Imperam o medo de um lado e a violência do outro. Ambos reflexos de uma violência maior e oculta sistemática, altamente divulgada pelos meios de comunicação, pelo marketing e pelas mais respeitosas instituições sociais e políticas. Violência que tem uma aparência muito pacífica, pois abriga-se no arcabouço legal da Constituição, nos três poderes da Estado e no modelo de desenvolvimento dos países. Estes, por seu lado, não passam de capatazes, subordinados às ordens do Senhor Mercado Total.
Daí a necessidade premente de buscar uma alternativa ao modelo civilizatório. Os adjetivos são os mais variáveis: sustentável, justo, igualitário, frugal, responsável, sóbrio e assim por diante. Hoje, os bens são exagerados para as classes dominantes e raros e caros para as populações pobres. Semelhante alternativa passa, sem dúvida, por uma nova convivência e uma nova relação com o outro, com a natureza e com as forças cósmicas. Desse ponto de vista, a crise não deixa de sê-lo, mas coloca em nossas mãos novas potencialidades. Trata-se de escolher: ou devorar as riquezas do planeta e nos devorar uns aos outros, para depois sermos todos devorados pela hecatombe; ou estabelecer um novo modo de coexistência com as coisas, com todas as formas de vida e conosco mesmo.
A escolha envolve o modo de produzir, o modo de organizar a sociedade e o modo de ver o mundo e a vida, isto é, envolve a economia, a política e a cultura. Muitas iniciativas, no Brasil e em muitos outros países, já apontam nessa direção. Baste citar, a título de exemplo, as numerosas experiências de economia solidária, onde o motor da produção não é o lucro, e sim a convivência humana fraterna e solidária.
Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com