Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

sexta-feira, 4 de julho de 2008

R I S P A uma Lider silenciosa e/ou silenciada

Porque esta mulher inspira nossa busca de um discipulado de iguais?
Entre as histórias bíblicas, encontramos uma pouco lembrada, ou até desconhecida. É a brevíssima história de Rispá, filha de Aiá. Mais que uma história sua presença e seu gesto é decisivo para fazer a diferença e reverter um relato de violência sangrenta numa história de resistência mística-profética. A presença de Rispá (2Sam 3,7; 21, 8-11), transforma uma história de guerra e de morte, em "história sagrada".

Rispá hebr. Riçpah significa "Pedra brilhante"1. É concubina do rei Saul. Sua atitude e postura de resistência, em favor da vida, está registrada no segundo livro de Samuel.
Rispá era mãe de Armoni e Mefibosete, filhos de Saul. Estes dois filhos e mais cinco netos de Saul, filhos de Merab, filha de Saul, foram entregues, por Davi, aos gabaonitas, como expiação pelo massacre executado pelo rei Saul. Os gabaonitas crucificaram os sete israelitas, deixando seus corpos expostos desde o princípio da ceifa da cevada na primavera, por todo o ardente estio, até à queda das chuvas periódicas em outubro.
Deixemos que esta mulher abra nossos olhos e nos fale, hoje, através de sua ternura, coragem e presença silenciosa:
de protesto e resistência,
de perseverança e esperança,
de amor e paixão pela vida,
num contexto de violência, de guerras e de cultura da morte.
Partindo da Realidade
Antes de olhar de perto o texto bíblico, que funciona como um espelho para nossa vida, queremos contemplar a realidade de tantas mulheres no mundo de hoje.
Certamente conhecemos histórias de violência e de resistência que precisam ser lembradas e recontadas para reavivar a esperança na vida, para além da morte.
Estas histórias de mulheres ajudam-nos encontrar-nos mais de perto com RISPÁ. Ela é uma mulher-símbolo, cuja história foi registrada, ligeiramente, na Bíblia. Sua atitude de resistência perseverante carrega em si o grande mistério da paixão pela vida que podemos chamar de mística.
Olhando mais de perto o texto, dentro do seu contexto
O contexto do tempo da monarquia respira forte ambição de poder e de violência por causa dessa ambição de poder. Assim percebemos que a acusação feita contra Abner (2 Sam 3.7), ocultava a insinuação de que Abner estava planejando uma estratégia sutil para apoderar-se do trono.
Sobre o contexto específico, no qual surgiu 2 Sam 21, 1- 1-14, sabemos que, nos dias do rei Davi, houve três anos de fome em Israel. E a fome é interpretada como um castigo de Deus. Os gabaonitas tinham uma pendência com o povo israelita, por causa de um massacre executado pelo rei Saul, antecessor de Davi. Davi consultou a Deus sobre o porquê desta fome. E Deus falou: "É por causa de Saul e da sua casa sanguinária, porque ele matou os gabaonitas." (2 Sam 21,1). Davi tentando consertar o passado consultou os gabaonitas e não mais a Deus, sobre o que fazer em sinal de reparação.
Os gabaonitas eram homens de muita astúcia e já tinham enganado Israel em outra oportunidade (cf. Js 9,3-27). Em resposta à consulta de Davi, mais uma vez, mostraram seu espírito de vingança e exigiram:
"De seus filhos (descendentes de Saul) se nos dêem sete homens, para que os crucifiquemos (sacrifiquemos, esquartejemos ou enforquemos) ao SENHOR em Guibeá de Saul, o eleito do SENHOR." E disse o rei: Eu os entregarei. " (2 Sam 21,6).
Foram mortos, no monte diante do Senhor, os sete homens, dois filhos de Rispá e Saul e cinco netos, filhos de Merab. Seus corpos ficaram expostos, a mercê das aves do céu, dos corvos, e das feras do campo.
Neste momento do relato entra em cena Rispá, ocupando o centro do texto. Não se tem nenhuma notícia de Merab a mãe dos cinco filhos sacrificados e expostos com os filhos de Rispá.
Rispá, símbolo de resistência e protesto contra morte violenta
"Então Rispá, filha de Aiá, tomou um pano de cilício, e estendeu-lho sobre uma penha, desde o princípio da colheita, até que a água do céu caiu sobre eles. Ela não deixou as aves do céu pousarem sobre eles durante o dia, nem os animais do campo durante a noite. " (2 Samuel, 21,10).
Rispá, certamente tomada de profunda dor, não ousou falar uma palavra sequer. Armou uma tenda com sacos de estopa. Ficou aí vigilante e alerta, desde o princípio da ceifa da cevada, na primavera, por todo o ardente estio, até à queda das chuvas periódicas, em outubro. O texto diz que Rispá, durante todo esse tempo, conservou-se sentada sobre uma rocha, perto do lugar onde estavam expostos os sete israelitas, não consentindo que de dia as aves do céu, e de noite as feras do campo devorassem seus corpos (2 Sm 21,1 - 11). Aproximadamente seis meses, ela vigiou e protegeu os sete corpos. Certamente não ficou sozinha neste protesto. Mais pessoas, mulheres e outras terão se unido a ela em solidaridade. O protesto individual tornou-se coletivo, adquirindo assim uma força de irradiação política e profética.
A atitude de Rispá chegou aos ouvidos de Davi, o qual se arrependeu de seu ato. Ordenou que transportassem e enterrassem aqueles restos de corpos humanos e que trouxessem Rispá na sua presença.
"Enterraram os ossos de Saul, e de Jônatas seu filho na terra de Benjamim, em Zela, na sepultura de seu pai Qish, e fizeram tudo o que o rei ordenara; e depois disto Deus voltou a ser propício com a terra. " ( 2 Sam 21,14).
E voltou a chover na terra de Israel. A chuva, com toda sua força simbólica religiosa é, para o povo de Israel, manifestação da graça de Deus.
Uma leitura com suspeita
Este texto a primeira vista é um relato de violência, de vingança, de derramamento de sangue. Com a chave hermenêutica da suspeita nos perguntamos:
Quem escreveu esse texto? Com que interesse? Para quem foi escrito? E como funciona, ou para que é útil um texto desses?
Até o final o texto dá a impressão que Deus fez chover por causa do arrependimento de Davi. Seria para salvar a imagem de Davi? E como fica a imagem de Deus? Note-se que o nome de Deus no hebraico aparece no início como Javé e no final do texto como Elohim.
E ainda podemos perguntar: Por que um texto tão violente como esses pode ser considerado sagrado?
Nos passos da dança da libertação e transformação da hermenêutica feminista2, somos convidados e convidadas a recriar com imaginação criativa a história dessa mulher Rispa e de tantas pessoas, mulheres e homens, jovens e crianças, engajadas hoje no protesto e na resistência contra a banalização da violência e suas justificação ideológicas.
Relendo a atitude da Rispá para nossos dias
Rispá e seu grupo resistem contra a morte violenta; resistem à morte estúpida sem sentido; resiste contra uma falsa imagem de Deus que estava profundamente arraigada na tradição religiosa do povo de Israel: "Deus necessita do sacrifício humano para voltar a ser misericordioso com seu povo". A história de Caim e Abel, a história do sacrifício de Isaac foram uma tentativa de quebrar esta imagem sacrificial de Deus. Porque Davi reproduz a mesma atitude sacrificial? E porque hoje ainda reproduzimos tantos sacrifícios humanos, como vítimas expiatórias?
A religião pode corromper o bom senso humano. Basta lembrarmos os vários atentados de terror, as guerras santas desencadeadas em nome de tantos falsos deuses. 11 de setembro de 2001 ficou registrado na memória histórica como um divisor de águas da violência. O que se desencadeou após 11 de setembro porém é muito pior e revela, em grau extremo, até que ponto chega a ânsia do poder de dominação. Utiliza-se para isso qualquer meio de corrupção, inclusive a religião e o nome de Deus.
Olhando para Rispá vemos que nada podia fazer para impedir a morte de seus filhos e dos demais cinco israelitas, marcados para morrer. Porém ela não concorda com esta forma violenta e cruel de proceder com vidas humanas. Menos ainda se conforma com os motivos religiosos e políticos alegados para justificar tal violência.
Percebe-se que Rispá, cuja reação só é mencionada mas não contada em detalhes, é alimentada por verdadeira paixão pela vida. Sua fonte de resistência certamente é o Deus da Vida e não a falsa imagem religiosa de um deus da vingança e da satisfação vicária. Isto é notável pela sua atitude perseverante permanecer dia e noite junto aos sete corpos humanos. Haverá um sinal mais forte e expressivo para testemunhar o senso de dignidade do corpo humano? Corpos sagrados, corpos mutilados, corpos em decomposição, corpos de filhos, simplesmente corpos humanos, habitação de Deus que quer vida e vida em abundância.
O que nos ensina esta mulher Rispá para nossa Espiritualidade?
Nosso Deus não quer nem necessita de sacrifícios humanos. Ele não é um Deus lunático. Deus antes sofre e é solidário com todo sofrimento provocado pela violência. Deus sofre com o desrespeito à dignidade humana, por isso assumiu o caminho da cruz e da morte de cruz. Aí ele próprio é atingido pela violência. Mas o AMOR continua sendo a última palavra. O anúncio da Ressurreição é um grito de alegre protesto contra a morte violenta.
E aí está Rispá, e o grupo de mulheres solidárias com ela, muito antes da manhã da Ressurreição. Ela vai para a montanha velar os sete corpos mortos. Tem consciência que esta matança e este sacrifício expiatório não é vontade de Deus. Com um sentimento de indignação contra esta imagem de um Deus que quer ver sangue para ser benigno com seu povo.
Rispá não tem uma imagem de Deus. Ela é a imagem de Deus, com sua presença silenciosa, solidária, profética. Ela não grita, não toma nenhuma vara para bater e espantar quem se aproxima. Simplesmente toma um saco de estopa que servia para a colheita e senta sobre ele. Sobre uma rocha dura e fria. Protesto silencioso e bloqueio simbólico contra a injustiça. Protesto silencioso e bloqueio simbólico contra a manipulação religiosa, contra a morte indigna de inocentes. Uma mulher que não quer enrijecer seu sentimento de dor e de luto, com ódio e vingança.
A história de Rispá provoca e desafia nossa espiritualidade da confiança que passa pela perseverança, pelo protesto contra toda injustiça e pelo caminho da resistência. Da presença vigilante, silenciosa e perseverante diante daqueles corpos humanos expostos, cresce sua coragem de mulher que acredita na vida. Seu protesto individual torna-se coletivo e cria a dimensão e a força de uma provocação política, pois sensibiliza o próprio rei Davi. Finalmente ele manda recolher os ossos e sepultá-los.
A história de Rispá nos convida a fortalecer a perseverança da nossa fé. A viver a confiança no Deus amigo e bondoso que acolhe e não castiga, nem exige sacrifícios expiatórios ou vicários da pessoa humana. Fortalece nossa imagem de um Deus Vivo e Providente que eleva os humildes e derruba do trono os poderosos e os corruptos.
E para concluir, vem-me à memória o belíssimo canto de Milton do Nascimento, que gostaria de partilhar como espelho que une a realidade de hoje com a história contada na Bíblia. Olhando para as Rispás e para as Marias, de ontem e de hoje, cantamos:
"Mas é preciso ter força, é preciso ter raça,
É preciso ter gana, sempre,
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria.
Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça,
É preciso ter sonho sempre,
Quem traz na pele esta marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida".
As pequenas histórias contadas, ou escondidas, na Bíblia, revelam esta mesma "mania de ter fé na vida". São narrativas que mostram como o povo de Deus, em momentos de crise, busca estratégias de resistência, para defender a vida. São histórias pitorescas, que se entrelaçam no grande relato que chamamos "História Sagrada".

Questões para refletir:
Que realidade, contexto, está por trás deste texto?
Como Rispá, com sua história, nos ajuda a questionar nossas imagens de Deus ?
Que imagem de pessoa humana e de Deus ela transmite?
Qual a liderança de Rispa e o que podemos aprender para viver e agir no discipulado de iguais?
O que faz uma história tão violenta tornar-se PALAVRA DE DEUS? Conhecemos alguma história semelhante na realidade de hoje?

Lucia Weiler (lucia_weiler@yahoo.com.br)
1 John DAVIDS. "Rispa"em: Novo Dicionário da Bíblia. Rio de Janeiro: Hagnos, 2005, p. 1060
2 FIORENZA, Elisabeth Schüssler. Los caminos de la Sabiduría: una introducción a la interpretación feminista de la Bíblia.Santander: Sal Térrea, 2001, p. 255