Lucimar Moreira Bueno(Lucia) - www.lucimarbueno.blogspot.com

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Palestra da prof. heloisa fernandes, no ato politico contra a criminalização do MST- Auditorio da UFRGS, Porto alegre, dia 29 de julho 2008

Criminalização dos movimentos sociais

Devíamos estar aqui hoje em festa, comemorando os vinte e sete anos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. De fato, foi no dia 25 de julho de 1981, Dia do Trabalhador Rural, que se realizou o encontro da Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta, aqui mesmo no Rio Grande do Sul, considerado o berço do MST. Como lembra João Pedro Stedile, “vieram pessoas do Brasil inteiro. Reunimos 30 mil pessoas numa luta camponesa em plena ditadura militar. (...) Vieram ônibus de São Paulo, Santa Catarina e Paraná. Estiveram presentes dom Tomás Balduíno, pela CPT, e representantes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) (...) Isso foi ainda no governo Figueiredo. A motivação era manifestar solidariedade à luta pela reforma agrária e, ao mesmo tempo, lutar contra a ditadura militar”.( 2005, p.22 e 23)
O significado histórico daquele encontro foi muito bem retratado pela Roseli Caldart, pedagoga do MST, nascida aqui no Rio Grande: “estes seres desgarrados da terra, marginalizados de tudo e com a vida escorrendo-lhes entre os dedos de pés descalços (...), esses seres miseráveis, quase nem parecendo mais realmente humanos, de repente (ou nem tanto) resolvem, aos milhares, e organizadamente levantar-se do chão e lutar pela terra de que foram arrancados (...)”. ( 2004, p.25)
Essa brava gente, com fome de terra e de direitos, levantou-se do chão e se organizou para lutar pela terra, pela educação, pela saúde, pela dignidade, pela justiça. Arquiteta de sonhos, começou a construir uma história de resistência à onipotência dos poderosos e de resgate da sua humanidade. Uma história de muita dor, privação e desespero, mas, também, de grandes vitórias. Aliás, chama-se Cooperativa Vitória o assentamento-símbolo do Movimento Sem Terra. Se tivesse tempo, leria com prazer para todos nós aqui presentes a reportagem de Luiz Maklouf Carvalho, “O modelo Vitória” publicada na Revista Piauí do mês passado. Basta mencionar que, para o jornalista, “o assentamento-símbolo do Movimento Sem Terra é uma ilha sem propriedade privada, com casas grandes e mesa farta” (2008, p.29) Uma brava gente trabalhadora, alegre, ordeira, gente que cultiva a terra de sol a sol, estuda, brinca, namora, casa, tem filhos, dança e sonha. A reportagem é um desmentido factual ao imaginário retratado pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul que apresenta esta mesmíssima gente como um bando de malfeitores, quadrilha de ladrões que maltrata suas crianças e usa técnicas de guerrilhas das FARC, atacando a polícia com seus estilingues e bolinhas de gude!
Uma pena que a gente não tenha tempo para trazer tantas informações, depoimentos, vivências, construções, conquistas! Pois não é que nestes vinte e sete anos, através do MST, milhares de brasileiros excluídos da cidadania se transformaram em sujeitos de direitos, amantes da igualdade, da decência e da dignidade! Pois não é que na Encruzilhada Natalino, organizados num movimento legítimo, os deserdados da terra acreditaram na sua capacidade de mudar seu destino e adquiriram raízes, identidade, sonhos e até o projeto de fazer uma nação neste nosso gigante adormecido!
Por isso mesmo, nestes vinte e sete anos, o MST incomodou, atrapalhou, tornou-se uma pedra no sapato de uma sociedade tão escandalosamente excludente, como a brasileira. A verdade verdadeira, como proclamou ainda outro dia, num documentário exibido na televisão[1], o historiador Carlos Guilherme Mota, é que entramos no século XXI mantendo uma sociedade de castas e vivendo num “capitalismo senzaleiro”, ou seja, no capitalismo das senzalas!
Penso que é por isto que, nos acampamentos e nos assentamentos do MST, estudam-se as obras do Florestan Fernandes e do Paulo Freire, mas, também, do Caio Prado Jr., do Sergio Buarque de Hollanda, do Milton Santos, todos estes e muitos outros intelectuais brasileiros, de renome internacional, que pesquisaram, publicaram, denunciaram: somos uma sociedade rachada por um muro, uma sociedade que não realizou a revolução democrática. É por isso que a nossa é “uma sociedade autoritária. Escravocratas durante séculos, seguimos patrimonialistas. E saímos de uma ditadura de duas décadas há pouco mais de 20 anos. Essas marcas estão inscritas na maneira de pensar, no país que conseguimos ser: ainda desiguais demais, ainda democratas de menos” (Barros e Silva, F., 2008)
Numa sociedade como a nossa, oligárquica, hierárquica, violenta e autoritária, um movimento como o dos Trabalhadores Sem Terra incomoda. Afinal, somos uma sociedade onde as leis existem para preservar os privilégios dos “cidadãos da primeira classe” e para reprimir, conter, sufocar, prender, matar a grande maioria dos brasileiros, que viajam na segunda classe. Aliás, sempre que necessário, as leis são modificadas para preservar os privilegiados[2] e não por acaso, em nosso país, as lutas dos trabalhadores sempre foram tratadas como questão de polícia. Por isso mesmo, como diz Marilena Chauí, “o poder judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos” (2008, p.71)
Exatamente porque estamos cindidos por um muro secular de injustiça e desigualdade, não podemos tolerar a manifestação explícita dos conflitos e das contradições, proclamados como perigosos, ilegítimos, criminosos. Precisamos do mito da “boa sociedade inclusiva, pacífica e ordeira” (Chauí, 2008, p.73). Vivemos da denegação: não somos racistas, porque as raças não existem; não há trabalho escravo, porque os trabalhadores estão onde quiseram estar; não há fome, mas vagabundos e incompetentes; nas universidades públicas ingressam os que foram premiados pelos seus méritos e não pelos seus privilégios, etc. etc. e por todos os séculos vividos e a viver.
Numa sociedade como a nossa, a exclusão é ainda mais perversa porque obriga o excluído a assumir que ele é o culpado da sua própria exclusão!
Numa sociedade como a nossa, um movimento como o do MST, que pretende organizar os excluídos para que lutem por seus direitos, um movimento como este, além de ilegítimo, como pretende a Promotoria do Rio Grande do Sul, é um perigo, um escândalo, uma afronta, que é como o MST costuma ser apresentado pelos grandes meios de comunicação, jornais, revistas e televisão. Ainda mais quando este Davi resolveu enfrentar o verdadeiro Golias, o grande capital transnacional, um adversário muito mais forte e poderoso que a oligarquia latifundiária! Aliás, retomando Carlos Guilherme Motta, diria que somos uma sociedade capitalista senzaleira globalizada pelas multinacionais!
Porque não aceita assumir que é a culpada da sua própria exclusão, a brava gente do MST precisa ser recolocada no seu lugar de gentinha, “réus que não são apenas sem terra, mas, talvez pior, sem nome”, como escreveu o Procurador Geral de Justiça, Mauro Henrique Renner, em mensagem distribuída pelo correio eletrônico (2/7/08, 17:07:18).
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David enfrentando um verdadeiro Golias! O MST não é uma empresa, não é um sindicato, não é uma escola, não é uma igreja, não é um partido. É uma comunidade de brasileiros, homens e mulheres; brancos, negros, mulatos, índios; velhos, jovens, adultos e crianças, decididos a destruir a senzala e transformar nosso país numa Nação. O que une essa brava gente brasileira é o sentimento que se fez presente na Encruzilhada Natalino: a esperança de ser gente.
Reprimindo, prendendo, processando, punindo, a lei pretende matar dois coelhos com uma só cajadada: de um lado, criar um cordão de isolamento em torno dos Sem Terra, apresentados nas cidades como uma quadrilha de bandidos e desordeiros; de outro, estigmatizar os Sem Terra na degradação de um processo infamante destinado a produzir medo, vergonha e humilhação!
Penso que o verdadeiro réu da Promotoria não é, de fato, o MST, mas a esperança, esta da qual nos fala Mia Couto, um sábio africano:
“Dizem que a esperança é a última a morrer. É isso que se diz. Contudo, não é verdade. A esperança é o mais frágil dos sentimentos, um dos primeiros a desvanecer. Porém, ela morre no sentido que os africanos têm da morte. Quer dizer, ela morre, mas não fica morta. Continua vivendo entre nós, do nosso lado.” (2007, p.124)
Heloísa Fernandes,
Socióloga, USP,

Porto Alegre, 29 de julho de 2008

Bibliografia citada:
BARROS E SILVA, F., Ilusões Perdidas, Folha de S. Paulo, 21/08/08, p. A2.
CALDART, R.S., Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo, Expressão Popular, 2004.


CARVALHO, L.M., O Modelo Vitória, IN: Piauí, 21, ano 2, junho 2008.
CHAUI, M., Cultura e Democracia, IN: Crítica y Emancipación, ano 1, n. 1, junio 2008, Buenos Aires, CLACSO.
COUTO, M., Pensatempos, Ndjira Editora, 2007.
STEDILE, J.P. e FERNANDES, B.M., Brava Gente, A trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
[1] Documentário Antonio Candido e a Geração de Mestres, produzido por Florestan Fernandes e exibido na TVBrasil, no dia 24 de julho de 2008.
[2] Ainda agora, está sendo submetido ao Senado um projeto modificando a possibilidade do capital estrangeiro ser proprietário de terras de fronteira.